Lúcia Santantonho Ramos, mestre em Literatura Brasileira, colaboradora da Editoria de Arte e Cultura da Plataforma Nacional do Facetubes (www.facetubes.com.br).
Sob o olhar da crítica especializada e o rigor que a editoria de Arte e Cultura do Facetubes cultiva em suas reportagens, é quase inquestionável o valor literário de Ana Cristina César (1952-1983). Poeta, ensaísta, tradutora e crítica literária de rara lucidez, ela imprimiu à poesia brasileira uma marca inconfundível de sensibilidade e profundidade intelectual. A agudeza de seu olhar crítico, aliada à capacidade de articular vida e literatura como dimensões inseparáveis, faz de sua leitura um rito inescapável para quem deseja desvendar os meandros da poesia contemporânea.
Sua trajetória ganha relevância já na década de 1970, quando Ana Cristina se destaca por uma poética intimista, marcada pela coloquialidade e por um compromisso constante com a crítica social. Mais do que simples versos, sua produção engloba ensaios, traduções e reflexões críticas, demonstrando as emoções que a consagrou. A consistência de seu trabalho e a força de suas ideias se refletem no acervo que guarda suas criações: um conjunto robusto, um dos mais completos do país, disponível no Instituto Moreira Salles (IMS).
Esse Acervo de Ana Cristina Cesar chegou ao IMS em etapas ao longo de 1999 a 2005, constituindo hoje um conjunto de valor histórico inestimável. Nele, encontramos cerca de 797 itens catalogados, entre livros e periódicos, além de uma miríade de documentos manuscritos – que vão de anotações de leitura, críticas literárias e poemas a correspondências e provas de impressão de livros. Registros em áudio e até sua máquina de escrever completaram o painel, evidenciando o caráter vivo de sua produção intelectual.
Em 1998, a editora Ática associou-se ao IMS para relançar títulos essenciais de Ana Cristina, como A teus pés e Inéditos e dispersos. O trabalho de organização acadêmica também se mostra expressivo: a professora Viviana Bosi, da Universidade de São Paulo, mergulhou nos 301 manuscritos do arquivo, encontrando conjuntos cuidadosamente organizados pelo próprio poeta com títulos sugestivos como “Prontos mas rejeitados”, “Inacabados” e “Rascunhos/primeiras versões”.
Dessa minuciosa pesquisa realizada Antigos e soltos (2008), edição "fac-similar", mantém vivos o afresco e a pulsação criativa de Ana Cristina. Já em 2010, sob consultoria de Literatura do IMS, o poeta e professor Eucanaã Ferraz promoveu o curso “Aos pés de Ana Cristina”, reforçando o interesse acadêmico e público por sua obra.
Ana Cristina César, desta forma, é uma autora que traduz, nos versos e nos escritos em prosa, o efervescente período cultural em que viveu – época de intensas transformações sociais no Brasil, marcada pela busca de novas formas de expressão e pela crítica a modelos estabelecidos. Sua poesia, ao mesmo tempo delicada e contundente, permite que o leitor revisite questões identitárias, afetivas e políticas com olhos desarmados e atentos a cada sutileza.
Eu destacaria uma frase interessante dessa poeta para compreender seu espírito de risco e a ironia refinada que a distingue. Para isso, recorro a um de seus registros em correspondência preservada. Em "Correspondência Incompleta" (São Paulo: Ática, 1999, p. 34), Ana Cristina escreveu:
“Quero sempre poder dizer que andei na corda bamba por gosto.”
Esse lampejo de ousadia atravessa toda a sua produção literária e justifica o porquê de ser fundamental ler e reler Ana Cristina César. Em sua voz, encontramos ecos de uma sensibilidade atenta ao cotidiano e, ao mesmo tempo, afeita aos temas universais que compõem a alma humana. Assim, seu legado permanece vivo e impactante, convidando-nos a experimentar a liberdade criativa e o gesto crítico que ela cultivou em cada linha que escreveu.
Noite de Natal.
Estou bonita que é um desperdício.
Não sinto nada
Não sinto nada, mamãe
Esqueci
Menti de dia
Antigamente eu sabia escrever
Hoje beijo os pacientes na entrada e na saída
com desvelo técnico.
Freud e eu brigamos muito.
Irene no céu desmente: deixou de
trepar aos 45 anos
Entretanto sou moça
estreando um bico fino que anda feio,
pisa mais que deve,
me leva indesejável pra perto das
botas pretas
pudera
(ACC).