*Mhario LIncoln
Recebi, esta semana, duas obras da “Manuscritos Editora”/Joiville/Santa Catarina: uma delas, “Arte Literária-Um olhar sobre o palco da Escola de Teatro Bolshoi no Brasil”, antologia norteada pela “Grande Suíte do Ballet Don Quixote”, o que ratifica o ensinamento de Jean-Georges Noverre “(...) a dança é uma poesia onde cada movimento é uma palavra(...)”. A outra, é um livro de poesias lançado pela executiva da editora em referência, de extrema qualidade. Aliás, os dois livros são simplesmente perfeitos em gênero, número e grau. Por isso, meu título acima.
Assim, nada mais justo do que me deliciar, após tantos livros neste 2024, com algo diferente, quântico, de extrema sensibilidade. Algo como complementa Rita de Cássia Alves, na 4ª capa: ”Vácuo Quântico é o vigor do ritmo, em seu estado de contemplação. Nele, a luz dança e conspira no íntimo das horas”.
Esse livro de poesias da editora e poeta Bernadéte Schatz Costa, nasceu para cravar em definitivo seu nome na lírica vaishnavista da pedra de Shaligram, onde a imortalidade dos bons permanecerá, mesmo depois dos tempos. E foi essa poeta que tive a honra de tê-la conhecido durante o lançamento da confreira (Centro de Letras do Paraná, cuja honra é imensa em ser membro efetivo), Madalena Ferrante, outro grande destaque das letras do sul do Brasil.
Mas, “Vácuo Quântico”, também ganha novos contornos, seguindo o relato brilhante do prefaciador Fernando José Karl: “A escritora Bernadéte Schatz Costa, com milênios de assas sob as pálpebras, ousou escutar as cantilenas que emanam do Vácuo Quântico de seu espírito profundo(...)”.
Destarte, o livro (com capa feita com recortes da obra do próprio José Karl e ilustrações do miolo, de Denise Costa) começa a ser extraordinário a partir da apresentação dele. Veja, a produção de sucesso de um livro, passa obrigatoriamente por um momento organizatório e responsável, desde a escolha do tema da capa até o ponto final, no miolo. Não se pode fazer de forma “qualquer/ a bel prazer” a estrutura de um livro. Se não, a beleza da construção literária que integra a obra, será literalmente perdida.
No caso de “Vácuo Quântico”, a primeira coisa que notei foi a disciplina e o organograma da publicação. De extrema profissionalidade e bom gosto. E isso me traz à lembrança as palavras de meu pai querido, advogado José Santos, quando, esbaforido e eufórico, levei meu primeiro livro de Direito, “Teoria e Prática do Inquérito Administrativo”, impresso às pressas, a fim de que coincidisse com minha posse, como membro-fundador da Academia Maranhense de Letras Jurídicas.
Qual não foi minha surpresa. Em sua humildade me apontou alguns erros clássicos em uma publicação e, desta forma, me deixou uma grande lição: “Não prospera um trabalho autoral onde só o autor interfere e não abre oportunidade para uma discussão ampla com os editores e colaboradores. Se não com ampla análise, exceto bajuladores, o livro passa a ser de um leitor só; o autor”. Jamais esqueci!
Sim, porque tudo começa com a escolha certa do prefaciador ou apresentador, muito além da amizade ou de um ato de gentileza e gratidão. Vale lembrar que apresentação ou prefácio profissional é como uma chancela de repetição e de contexto literário, indo além do simples aval afetivo que um amigo poderia dar.
Enquanto o ‘prefácio amigo’ geralmente valoriza a relação pessoal e a admiração do autor, (fato normal, claro), um prefácio escrito por alguém reconhecido no meio editorial ou literário (como no belíssimo texto de Fernando José Karl, em “Vácuo Quântico”, que une as duas coisas), acrescenta camadas de legitimidade, referências e, sobretudo, diálogo com o cânone ou com a tradição crítica. Isso cria uma “porta de entrada” para o leitor, destacando nuances estéticas e contextos interpretativos que talvez passem despercebidos em uma leitura desavisada.
À propósito, dá para convidar para a nossa mesa, inclusive, o editor Luiz Schwarcz, fundador da Companhia das Letras, em entrevistas sobre o processo de publicação. Ele comenta que um bom prefácio ou apresentação funciona quase como um selo de qualidade, pois antecipa o olhar criterioso de alguém com autoridade no assunto: “um prefácio profissional confere credibilidade à obra e gera interesse imediato no leitor”, reforçando que este tipo de texto se torna um primeiro diálogo — muitas vezes decisivo — entre o livro e o leitor.
Neste caso, ao ter em mãos o livro poético de Bernadéte Costa, cuja obra em si já é forte, diferente, enxuta, cujos versos são produzidos por uma poeta, “igual uma arqueira Zen que acerta sempre no alvo (..), reproduzindo o que escreve Karl, o prefácio dele acaba tornando o livro ascendente.
E eu, premiado que fui com “Vácuo Quântico”, claro, vou passar os feriados de fim de ano consumindo mistérios, onde tentarei desvendar essa lírica com demasiada reflexão. E já começo com: “Na água do chuveiro,/ bebo o chá de hortelã/ que passa cortante na garganta/ semelhantes a agulhas de gelo”.
Veja que curioso: nos versos acima, ela brinca com os elementos naturais. A água, por exemplo, pode ser associada à purificação espiritual. O banho em si pode ser visto como rito de limpeza metafísica. A “agulha de gelo” me leva a crer o que li em algumas culturas, isto é, sentir sensações extremas (calor e frio) pode “ser uma espécie de ritual de passagem ou de fortalecimento espiritual”.
A fusão do chá quente com a “água do chuveiro”, se torna gelo em sentido figurado, e ilustra, em minha interpretação com total liberdade poética, a busca pela harmonia dos contrários, um símbolo de transcendência pessoal. Aliás, a noção de “harmonia dos contrários” como símbolo de transcendência, tem raízes em Heráclito, passa pela teologia místico-filosófica de Nicolau de Cusa e ganha relevância contemporânea na abordagem psicológica de Jung, ilustrando como, em diferentes épocas, uma reconciliação ‘dos opostos’ são vistos como via de acesso a patamares mais elevados de compreensão ou espiritualidade.
Então, nessa pequena amostra da abundância lírica e mística do que é “Vácuo Quântico”, volto a me emocionar quando entendo, em alguns dos poemas, com base nessa difícil fusão de opostos, sê-los representações subliminares de uma jornada da autora em busca do equilíbrio lírico, enquanto Bernadéte continua na labuta diária de construir pontes poéticas.
Mhario Lincoln é presidente da Academia Poética Brasileira.