
Por Sergio Tamer
"No terreno jurídico brasileiro, fomos atingidos em cheio pela insegurança, por decisões que interpretam o Direito conforme os ventos cambiantes da política, por entendimentos que em muito se afastam do texto normativo, do razoável e do ponderável…"
Sergio Tamer é Professor e advogado, é presidente do Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública – CECGP
O polonês Zygmunt Bauman trabalhou como professor nas universidades de Varsóvia, Tel Aviv e, mais tarde, em Leeds, na Inglaterra, tendo exercido grande influência no século XX, porém sendo especialmente conhecido por seu trabalho sobre a “modernidade líquida” onde discute a transição de uma modernidade “sólida” para uma moderna “líquida”, caracterizada pela fluidez, incerteza e efemeridade nas relações e instituições sociais. É a ultravelocidade dos fatos e das relações pessoais e interinstitucionais nos tempos em que vivemos. O que é hoje pode não ser amanhã ou daqui a algumas horas.
A sociedade sólida, ao contrário, era aquela que dependia do estável, do duradouro e do permanente. A família, por exemplo, era uma entidade fixa, sendo habitual que uma pessoa dedicasse toda a sua vida a um mesmo trabalho. Assim como o entorno social existente quando do nascimento de uma criança se parecia muito com aquele existente no momento de sua despedida para além-vida. As mudanças existiam, mas eram lentas, paulatinas, e se observava as suas vindas à distância. Neste novo século, porém, o seu primeiro quartel já aponta para o que veio: a única constância é a mudança! A nossa exposição a essas mudanças existe graças às nossas telas de smartphone que nos mantém informados a todo instante das transformações que ocorrem no universo. Assim é a “sociedade líquida” onde as pessoas já não têm o mesmo trabalho durante toda a sua vida. Fala-se em “reinventar” ou em “reengenharia” pessoal e de negócios. Eu próprio já experimentei diversas profissões e atividades empresariais que passam de uma dezena! O amor também é atingido por esse torvelinho que envolve a sociedade líquida: na Espanha, por exemplo, 50% dos matrimônios acabam em divórcio. E a percepção de “felicidade” assim como o valor pessoal já não depende do que fazemos, mas sim daquilo que consumimos. O consumo, aliás, é um pilar central, onde a identidade é construída pela posse de bens e pela busca por novas experiências. Portanto, o que Bauman observou é que a sociedade contemporânea é fluida e instável, marcada pela fragilidade de instituições, relacionamentos e identidades. Isso irá se refletir nos laços sociais e afetivos, na identidade pessoal multifacetada, instável, e no mercado de trabalho, este flexível, de curta duração e de substituição frequente.
No âmbito político, o Estado-nação, antes central na organização social, tornou-se incapaz de lidar com fluxos globais de capital, informação e tecnologia. A democracia, por sua vez, é ameaçada pelo fracasso das instituições em oferecer segurança e respostas aos medos dos cidadãos, levando à busca por soluções privadas e ao enfraquecimento da coesão social. A incerteza passa a ser a regra e os cidadãos perdem a confiança nas instituições estatais como fonte de esperança e segurança, abrindo espaço para a individualização e a busca por segurança privada, por soluções individuais, e até mesmo um certo isolamento social, o que fragiliza a comunidade e o senso de segurança coletivo. Nesse cenário, a democracia adoece, torna-se vulnerável pois, em face da crise do Estado, já não consegue obter os mecanismos necessários para enfrentar a complexidade do mundo contemporâneo. A saída, no caso brasileiro, aponta para a busca por novas formas de fortalecimento da participação cidadã, na reconstrução da confiança nas instituições, hoje abaladas por seu baixo índice de credibilidade, nomeadamente aquelas que integram os três poderes da República, – e na construção de um senso de segurança que afaste a exploração do medo, mas que se consolide no princípio da solidariedade.
No terreno jurídico brasileiro, fomos atingidos em cheio pela insegurança, por decisões que interpretam o Direito conforme os ventos cambiantes da política, por entendimentos que em muito se afastam do texto normativo, do razoável e do ponderável. O excesso de utilização de princípios normativos vagos para estatuir decisões que as vezes até confrontam com a mens legis, tem sido a “constante incerteza” desses tempos de fluidez e volatilidade. Outrora sólidas, as doutrinas jurídicas são hoje manipuláveis sem pudor o que resulta na fragilidade das relações sociais. Aqueles que se dedicam ao ensino jurídico tem, desse modo, um grande desafio diante de seus alunos, que é o de ir além da transmissão de conteúdos e buscar formar juristas mais críticos e capazes de lidar com as complexidades da sociedade líquida.
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