O Auto do Bumba-Meu-Boi[1]
José Neres[2]
Grávida, a escrava Catirina conta a seu marido, o Pai Francisco (ou Negro Chico) seu maior desejo: comer a língua do boi mais belo da fazenda. O homem não se fez de rogado e, mesmo sabendo das consequências de seu ato, matou o animal para oferecer a carne a sua companheira. O caso é logo descoberto, e o amo (dono da fazenda) fica furioso. Manda os índios guerreiros capturarem Francisco, pois o negro deve pagar pela ousadia de tirar a vida do melhor boi do rebanho. Diante do patrão, o escravo é humilhado e deve conseguir um meio de ressuscitar o animal. É chamado o médico (ou curandeiro) da região, que, após inúmeras tentativas baldadas, consegue trazer o animal de volta à vida. Francisco é perdoado e tem início uma grande festa, com comida e bebida à vontade.[3]
Temos acima uma das inúmeras versões de um dos mais conhecidos folguedos do folclore brasileiro: O Bumba-Meu-Boi. Como se pode facilmente perceber, o enredo foi inspirado nos autos medievais e adaptado para representar a formação do povo brasileiro e, ao mesmo tempo, mostrar algumas críticas sociais. O branco, representado pela figura do fazendeiro, é também um símbolo dos latifundiários, do poder econômico e político; os negros, simbolizados por Catirina e Pai Francisco lembram os oprimidos, os que trabalham arduamente e mal podem aproveitar os frutos do próprio suor; os índios, obedientes ao branco, lembram as transformações culturais ocorridas ao longo dos séculos de colonização. Na verdade, a própria composição estrutural da brincadeira são reflexos da diversidade cultural do povo brasileiro. O europeu contribuiu com o enredo, o negro acrescentou os instrumentos e o ritmo cadenciado, e o indígena, por sua vez, influenciou com a dança e com parte da indumentária.
Mesmo sendo comum à grande parte do Norte e do Nordeste, e em cada estado contando com inúmeras variações o Bumba-Meu-Boi acabou tornando-se, com o passar dos tempos, um traço cultural do povo maranhense. O auto deixou de ser apenas uma peça a ser repetida anos após anos e passou a ganhar vida própria. Os grupos foram adquirindo características próprias e as rupturas com a ideia inicial deram origem aos diversos sotaques que hoje disputam espaço na mídia e no gosto popular. Veja a seguir os sotaques que mais se destacam[4].
Matraca – O bailado lembra a dança dos timbiras. O som é marcado com o uso de matracas (pedaços de madeira de comprimento e espessura variáveis), maracás, tambor-onça e pandeirões, que são aquecidos diante da fogueira, para obtenção de um som mais nítido. Os chapéus de pena e os capacetes fazem com que a coreografia adquira um fortíssimo impacto visual. Os brincantes do sotaque de matraca são os que mais procuram preservar o enredo tradicional.
Zabumba – possivelmente, o mais antigo dos sotaques do Maranhão, tem marcação feita com o zabumba, um tambor que é tocado com auxílio de baquetas, os intervalos das batidas são preenchidos pelos toques dos tamborins e dos chamados tambores de fogo – tambores feitos de tronco de mangue, que tem o seu interior moldado a fogo e recebe uma cobertura de couro cru de boi. Durante as apresentações, os componentes do grupo não se esquecem de representar o auto e, misturando figuras nacionalmente conhecidas às personagens ficcionais, aproveitam para fazer denúncias sociais.
Orquestra – Preferido por uns e renegado por outros, o sotaque de orquestra é o que mais se afasta do modelo original do Bumba-Meu-Boi. As vestimentas são mais luxuosas e o ritmo é embalado por instrumentos de sopro (saxofones, clarinetes e pistons). A letra das toadas é mais elaborada e sentimentos como amor, saudade e amizade são valorizados. Uma atenção à parte merece o famoso Boi Barrica, que, com letras bem melodiosas e uma coreografia envolvente deixou aos poucos de ser tratado como algo puramente comercial e passou à condição de referência de inovação artística, ganhando inúmeros no Brasil e no exterior.
Independentemente do sotaque, a ideia inicial do auto do Bumba-Meu-Boi foi se modificando com o passar dos tempos e chegou ao século XXI com sua configuração inicial bastante modificada. A competição entre os diversos grupos acabou valorizando a figura do cantador de toadas (como é conhecido o cantor das músicas dessa manifestação folclórica). Muitas vezes, em busca de patrocínio, ou apenas para agradar a algumas personalidades, as toadas deixaram de lado o tom mítico e passaram a defender uma ou outra ideologia. Contudo, isso não descaracterizou totalmente a brincadeira, servindo inclusive de mote para outros grupos, que aproveitam os deslizes dos adversários para ridicularizá-los.
O mês de junho, no Maranhão, é inteiramente dedicado ao Bumba-Meu-Boi. Os santos mais conhecidos do mês – Santo Antônio, São João, São Pedro e São Marçal (principalmente o penúltimo) – recebem milhares de homenagens, sendo que do dia 29 para dia 30, um bairro – o do Joao Paulo – é quase que totalmente interditado, para que os diversos grupos folclóricos possam se encontrar e, durante aproximadamente 24 horas, o principal ritmo que se escuta é o do Bumba-Meu-Boi. Acabada a festança, começam os preparativos para as brincadeiras do ano seguinte.
Mas não é somente durante o mês de junho que a brincadeira é lembrada. Ao longo de todo o ano, as festas da morte do boi atraem pessoas de todos os pontos do Brasil e a produção de CD’s não deixa que a tradição morra. Vale a pena conferir uma das mais fortes e consistentes manifestações culturais do Brasil.
[1] Este texto foi publicado inicialmente na Revista De Repente, em maio de 2001. Ao longo desse período que separa a publicação original de hoje, houve algumas modificações estéticas e tecnológicas.
[2] José Neres é professor de Língua Portuguesa, pedagogo, historiador e designer editorial
[3] Há diversas variações desse enredo.
[4] Comentamos aqui apenas os três sotaques mais conhecidos. Há outros que não foram aqui citados.