* Mhario Lincoln
Visitei Erasmo Dias por duas vezes, em sua fase terminal. Porém, nada- absolutamente nada – me tirou a admiração por ele, nas duas vezes que fui e sai dos Apicuns. Existem muitas razões para essa admiração; como em outros momentos da história: Diógenes - o mais folclórico dos filósofos, fama que ganhou ao (possivelmente) sair em plena luz do dia com uma lamparina acesa procurando por ‘homens verdadeiros’ e se estivesse procurando, ainda seria difícil encontrá-los dentro do contexto em que ele queria encontrar. E por que cito Diógenes?
Porque Erasmo, por seu lado, procurava informação. Procurava sabedoria lendo toneladas de livros. Na visita que fiz a ele, tive que afastar quase 12 livros, ao redor da cama, obras parecidas fiéis vassalos romanos, abertas, cada uma, em determinadas páginas. Nesse ínterim, alguém gritou lá do fundo da sala: “não desmarca. Não desmarca!”. Cada página tinha, pra ele, uma significância existencial; pensei. Mas, é bom revelar que numa época de hoje (século XXI) em que a informação circula com velocidade vertiginosa, os textos de Erasmo Dias, sempre contiveram ideias futuristas, colocações moderníssimas, dentro de uma simplicidade de fazer inveja a alguns de seus colegas, que rebuscam tanto o parágrafo que se perdem na jaula do ilusionismo. (O sarcasmo político, era um pormenor deletério, mas não principal).
Então: ao receber dos amigos José Neres e Linda Barros, o livro “Erasmo Dias e Noites”, organizado pelo brilhante Nauro Machado, em parceria com a Academia Maranhense de Letras, um dos artigos me chamou muita a atenção. Titula-se, “Vamos ler esses americanos”. Confesso que fiquei deveras impressionado, haja vista detalhes muito além de seu tempo. Seu apelo — ler e conhecer os autores de língua inglesa — carregava (e ainda carrega, muitos anos depois), uma urgência que insistentemente reverbera não só na cultura brasileira, mas especificamente, na cultura de minha terra natal: São Luís do Maranhão.
Erasmo Dias, a meu ver, manifestou neste texto (abaixo reproduzido) a verdade de que “um intercâmbio cultural genuíno vai muito além de meras representações cinematográficas americanas”. Em vez de admirar apenas o sorriso simpático de Roosevelt, ele insistiu “na importância de entender as origens do milagre americano”, cujo desbravamento do Oeste, o ciclo do petróleo e as críticas raciais formam parte essencial da identidade dos Estados Unidos. Pois bem! Nesse ítem, Erasmo dá um show de conhecimento (e leitura). Profundo conhecimento das obras de Emerson, Walt Whitman, Edgar Allan Poe, Harriet Beecher Stowe, Jack London, Sinclair e outros nomes capazes de iluminar a complexidade da nação norte-americana.
Portanto, Erasmo Dias se torna ainda mais relevante para a história Universal, a partir de sua aldeia, quando menciona o “domínio da máquina”. Veja só a cabeça desse homem, há décadas, pensando no uso de uma possível “Inteligência Artificial “, automatizando tudo, a partir de máquinas comerciais. Outro detalhe que urge ser distinguido: a elite intelectual brasileira tem sido presa – por milênios – somente à literatura portuguesa e francesa. Esquecem – em muitos momentos - das produções alemãs (superficialmente um Von Goethe, um Hoffmann, um Nietzsche) ou inglesas, italianas e espanholas.
No belo texto – repito, de uma simplicidade e compreensividade ímpar - Erasmo Dias lamenta essas limitações e conclama os escritores a expandirem suas leituras, "condição essencial para que o país pudesse amadurecer culturalmente". O texto ainda defende a ideia de que, para alcançar os “píncaros da glória”, o estudar deve ir além dos autores domésticos e mergulhar nas obras que ajudam a compreender movimentos e realidades externas.
Assim, esse texto vale como lição para o presente. “Vamos ler esses americanos”, escreve Erasmo Dias. A ênfase desemboca na oportunidade que o leitor terá ao conhecer o espírito e a literatura que moldaram o imaginário da grande república do norte. Só lembrando alguns nomes (antigos) Emerson, Walt Whitman e Edgar Allan Poe, já citados por ele; e modernos, assim como entendo, Jeneva Rose (livro principal explica como as redes sociais e os sólidos conhecimentos de marketing lhe permitiram assumir o controlo da carreira), Taylor Jenkins Reid (conhecida por seu livro Os Sete Maridos de Evelyn Hugo), e na poesia, a incontestável e impossível de não ler, Rupi Kaur que, apesar de ser é indiana-canadense, é por demais influente nos Estados Unidos), entre outros exemplos.
No contexto, Erasmo escreve na mesma pegada (adaptada, claro) dos textos futuristas. Acho similar a um Rubem Braga, um Fernando sabino, um Antonio Maria, um Sergio Porto... e por aí, vai. Mas Erasmo acaba batendo numa tecla antiga – sine qua non: o conhecimento de outras culturas é o caminho para que a nossa (aldeia) se desenvolva em profundidade, mantendo uma autonomia crítica diante das inovações tecnológicas, mas em todos os sentidos do conhecimento iminentemente humano.
*Mhario Lincoln é presidente da Academia Poética Brasileira
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"Um dos grandes males de que nós brasileiros nos temos ressentido tem sido a monoatividade que caracteriza a nossa vida em todos os setores, desde a agricultura até a literatura" (Erasmo Dias).
VAMOS LER ESSES AMERICANOS(*)
Erasmo Dias
Vivemos, presentemente, o momento de maior aproximação com os Estados Unidos, que a nossa história registra. Mr. Caffery, embaixador de Washington junto ao nosso governo, declarou mesmo recentemente, em New York, que nunca foram melhores as relações entre os dois países. Desse fato, surge a necessidade de existir, antes de tudo, um perfeito conhecimento recíproco, a fim de que se estabeleça entre as duas repúblicas um intercâmbio completo, atingindo cultura, política e economia. Uma das bases para o estabelecimento desse intercâmbio está a cargo dos intelectuais de lá e de cá, e se deve assentar sobre o estudo e a divulgação das duas literaturas, produtos de culturas diferentes, cujo único e fraco traço de aproximação seja talvez o fator continental.
No que toca ao Maranhão, esta tarefa, que os nossos intelectuais deveriam encarar com a responsabilidade do momento que passa, resume-se numa exaltação lírica das coisas americanas, que aqui nos foram divulgadas pelos celuloides, que nos vieram de Hollywood, a par de uma santa ignorância pelo que são cultura e civilização, na grande república do norte.
Fato dolorosíssimo, mas fácil de constatar, é que, em nossa terra, com exceção talvez de três intelectuais, os nossos escritores conhecem de literatura americana somente aquela celebradíssima tradução do "Corvo", de Edgard Allan Poe, feita pelo velho Machado de Assis e que, digamos de passagem, fica muito a dever à do sr. Gondin da Fonseca.
Decorridos nada menos do que noventa e dois anos de morte do grande poeta do lusco-fusco e do horror, a sua obra continua para nós
desconhecida, servindo, apenas, o funéreo grasnar de sua ave símbolo, para ilustrar uma ou outra croniqueta ou ainda um suspirado soneto.
Em nenhum outro país do mundo chegou-se ao pleno império da técnica como nos Estados Unidos. Talvez em qualquer outra parte, a máquina não tenha dominado em todos os setores da vida, esmagando o homem, como nesse gigantesco país. De tudo isso o nosso povo tem, apenas, um conhecimento superficial, quando não uma simples suposição.
As grandes virtudes e os não menores defeitos da cultura americana são ignorados pela nossa gente. Jamais se poderá compreender ou explicar o episódio dos pioneiros, o desbravamento do extremo oeste, os preconceitos de cor, o ciclo do ouro na Califórnia, o ciclo do petróleo e, sobretudo, essa unidade que muitos sociólogos têm chamado de "milagre americano", desde que nos limitemos a admirar no "Movie-
tone" o simpático sorriso do presidente Delano Roosevelt, a oratória nervosa do honorable Cordell Hull, ou ainda o perfil de caprípede de mr. Henry Ford.
Cabe aos nossos intelectuais o dever de um profundo conhecimento da realidade americana, para que possam exercer honestamente a missão de nortear o nosso povo para essa aproximação preconizada, como uma das necessidades do momento atual. E essa realidade se
acha documentada numa literatura rica e expressiva que se impõe à admiração de todo o mundo civilizado.
Não poderíamos continuar a falar em norte-américa sem conhecermos Emerson, ignorando Walt Whitman poetas do continente, desconhecendo Berchel-Stowe, a escritora que imortalizou a tragédia do negro estadunidense; Jack London; Upton Sinclair (o grande Upton de "100%"); Sinclair Lewis (lembram-se de Ana Vickers no cinema?).
Dos Passos, o discutido John de "The Big Money", cuja técnica constituiu uma revolução no romance; Dreiser, o grande realista de "Tragédia Americana"; Sherwood Anderson, que a crítica alemã equiparou a Knut Hamsun e que desapareceu em março último; Wilder; Steinberg, o autor de "Ratos e Homens" (viram "Carícia Fatal" no cinema?) e "Vinhas da Ira", obras de profunda realidade e acentuado sentido humano.
Eugene O'Neil, esse revolucionário do teatro contemporâneo; Ernest Henmingway, o enfant-terrible da literatura americana, como o classificaram os burguesíssimos e saudosos críticos franceses. Isto se quisermos fazer abstração de Michael Gold, o terrível Michael de "Judeus sem Dinheiro", e Pearl Buck, a escritora que nos revelou o espírito novo da China, o que se torna impossível, apesar de todos os pesares...
Um dos grandes males de que nós brasileiros nos temos ressentido tem sido a monoatividade que caracteriza a nossa vida em todos os setores, desde a agricultura até a literatura.
Tivemos um século de cultura de cana-de-açúcar e de classicismo português; outro de cultura de café e de literatura francesa. Os nossos escritores são riquíssimos de Eça, Ramalho, Camilo, Castilho, Frei Luiz de Sousa, Vieira, Bernardes, Zola, Anatole, Balzac, Flaubert, Hugo, mas são paupérrimos de conhecimentos sobre as literaturas de língua inglesa, alemã, italiana e até espanhola.
Estamos em pleno período de grandes realizações para a nossa raça. Urge reagir contra os defeitos que têm prejudicado a nossa cultura. O povo aí está querendo saber como são a vida e a organização da grande Democracia do norte. É preciso dizer à nossa gente o que devemos aprender com os nossos amigos e, ao mesmo tempo, o que temos de melhor do que eles...
Para isso, só há um caminho, que interessa, principalmente, aos intelectuais moços: Vamos ler esses americanos.
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(*) Conforme o original publicado no livro "Erasmo Dias e Noite", organizado por Nauro Machado/Academia Maranhense de Letras (A partir da pág. 235).