*Mhario Lincoln
Na verdade, é a primeira vez que me dou a aventura de resenhar 'haicais'; uma dificílima forma de fazer poesias. Há uns quatro anos, quando frequentava o mundo da "Feira do Poeta", no Largo da Ordem, em Curitiba-PR, conheci alguns poetas especialistas nesse gênero poético, nascido no Japão, mas que conquistou o coração de alguns poetas importantes no Brasil, como Afrânio Peixoto, lá pelos idos de 1919.
Foi no contexto da "Feira do Poeta" que fui apresentado para Vanice Zimerman, pelo meu amigo e confrade, poeta, compositor, músico e editor-livreiro Osmarosman Aedo. Fiquei encantado com o trabalho dela, natural de Curitiba (PR), graduada em Letras (Português/Inglês), além de escritora, poeta e aquarelista. Aliás, é dela a foto que, naquela época, serviu de base para uma das minhas frases mais clássicas: "Nada consegue aprisionar a essência (MHL)".
Bom, depois tive que expandir meus estudos acerca do haicai e cheguei, também, a belíssimas criações, inclusive de Paulo Leminski, Millôr Fernandes e Guilherme de Almeida, cujos trabalhos seguiam a mesma linha quase ritualístico, e explicitando de forma imersiva a contemplação do instante fugaz. Matsuo Bashô (ou Matsuo Munefusa), um dos grandes mestres do século XVII, elevou a prática haicaista a ponto de torná-la mais do que um simples passatempo: converteu-a em uma arte que extrai beleza de detalhes mínimos e convida à reflexão sobre o fluxo da vida.
Foi nessa linha que meus olhos cresceram muito com pertinência ao trabalho de Vanice Zimerman. Mesmo que produza outros gêneros poéticos, acredito eu que é no haicai que sua sensibilidade atinge o ápice de expressão poética. A própria Vanice define o haicai como “uma aquarela, pincelada em três versos: é colher uma rosa com o olhar, sem tocá-la”. (Lindo, não é?).
Então, a partir dessa frase, começo a tentar entender a profundidade de suas criações porque nesse insight, não é revelado, apenas, o caráter estético da composição breve, mas também uma atitude filosófica e profundamente interpessoal. Destarte, ao evocar a imagem da aquarela, Vanice sugere leveza, transparência e sutileza, atributos específicos da essência do haicai, através de um instante fugaz e de precisão verbal, que a tinta poética de Zimerman se espalha sobre o papel, capturando o momento antes que este se dissipe.
Eu tive um vasto material para pesquisar porque Vanice é uma 'globetrotter' haicaísta: tem poemas e textos em 120 livros - Coletâneas: “Conexão” - Feira do Poeta - 2015 a 2023. Livros de Haicais: (Croácia 2015 a; 2024: 23. Samoborski (Darko Plazanin - Samobor Haiku), Kabocha, 2016 (Menção Honrosa) – Kenzo Takemori -2024; 5º lugar na Categoria Adulto, âmbito Estadual-2023. No Brasil e Croácia: Afrodita, Antologia-Haiku, Ludbreg-2023 etc. E ela não para. Hoje, participa do Grupo "O Zen do Haicai", organizado por Carlos Martins, no Facebook. E também colabora no Grupo "Chá das Cinco", organizado por Maurício de Oliveira, no WhatsApp.
Mas, apaixonei-me por três haicais que os achei, simplesmente, incríveis porque ela consegue construir, neles, uma ponte afetiva entre o homem, a natureza e a palavra, convidando o leitor a contemplar a existência em sua forma mais pura e essencial. Seja na cor das flores, seja no voo sereno de um pássaro, cada cena se ergue como símbolo de uma verdade íntima e inefável, acessível apenas à alma sensível que se apresenta a ver — e, sobretudo, a sentir.
Um deles foi feito anteontem e imediatamente enviado por ela a mim, (eu agradeço demais essa gentileza), fala do “Kigo de Verão":
"aurora estival -
Pires de luz e sombra,
em breves rendas"
Belíssimo diálogo sensível entre a estação, a luz nascente e a sutileza de uma imagem pictórica. O kigo de verão, “aurora estival”, evoca a estação quente e sugere a atmosfera de renovação própria às primeiras horas do dia. Na tradição do haicai, a clara presença de um kigo situado no poema, no ciclo natural, orienta o leitor a buscar experiência do instante em sua dimensão sazonal. Tais afirmações aprendi em um livro que obrigatoriamente tive que ler, sobre a obra de Matsuo Bashô ou Matsuo Munefusa.
Por causa dessas leituras, me chamou igualmente a atenção, o verso: "breves rendas”. Isto é, o véu delicado, através do qual se contemplam tanto a realidade externa (o surgimento da aurora) quanto a expressão artística (a aquarela). Nesse sentido, a sobreposição de elementos — a luz do dia, a textura das rendas e as cores recém-pinceladas sugerem uma cena simultaneamente palpável e etérea, como se o olhar da poeta estivesse espreitando o mundo através de finos arabescos.
Diante desses elementos não há como não convidar para a mesma mesa, Masaoka Shiki, o grande reformador e crítico do haicai, que defende a representação fiel da realidade imediata com simplicidade e exatidão sensorial. Estou realmente embevecido com tamanha oportunidade de me ver estudando um tema fascinante, através dos haicais da confreira.
Já no Haicai, abaixo, Vanice Zimerman, elabora delicado kigo (o “sol de inverno”), que remete imediatamente à transitoriedade luminosa dessa estação fria:
O sol de inverno –
“…em horinhas de descuido” –
meu olhar sorri.
Destarte, em poucas palavras, ela revela a sutileza de um instante em que, de forma distraída e quase imperceptível, o calor tênue do sol se transforma em motivo de alegria: “…em horinhas de descuido” – e meu olhar sorri. Detalhe: esse tem um honkadori, ou seja, referência a um poema ou frase de um autor clássico. No caso, acima, no verso, entre aspas, a citação é de Guimarães Rosa.
A presença de um tempo propício — o sol hibernal — segue o espírito do kigo, elemento imprescindível na tradição do haicai clássico, como se vê em Matsuo Bashô , Yosa Buson e Kobayashi Issa. Na sensibilidade desses mestres, a simples menção a um interesse natural, logo se converte em uma chave poética que abre para a sensibilidade do instante. Magnífico o que se pode dizer em tão poucas palavras. Aliás, em algum lugar, lendo Clarice Lispector, deparei-me com a seguinte frase: "As palavras sentem, reagem e se debatem com o sujeito poético". E é a pura verdade!
E por fim, entre centenas deles:
manhã vernal –
em recortes um rosto
fugaz coração...
Nesse haicai, Vanice Zimerman inseriu um kigo (elemento estacional) ao mencionar a “manhã vernal”, isto é, uma manhã de primavera. O cenário não apenas indica a estação do ano, como também sugere renovação e novidades. A cena se desenrola de maneira muito concisa: “em recortes um rosto / fugaz coração...”. Tais versos parecem aludir a fragmentos de imagens — um rosto que surge “em recortes”, talvez por meio de frestas de luz, folhas ou mesmo sombras matinais, enquanto um “fugaz coração” lateja, numa relação de emoção.
Aanaliso, a partir desses exemplos anteriores, que a estrutura (três versos breves) e o uso de "kigos" aproximam esse texto da tradição do haicai clássico. Entretanto, vale notar a dimensão modernizada do poema: a expressão “em recortes” sugere um olhar quase fotográfico ou cinematográfico, graças a capacidade aquarelista de Vanice. Já o “fugaz coração” demarca uma percepção pessoal, emocional, que se insinua no instante vívido.
Vale aqui dizer que também encontrei alguns insights interessantes que me levaram algumas vezes a pensar na construção básica e na ideia das produções poéticas de Paulo Leminski, conterrâneo da poeta que ora estudo. Uma delas, "La Vie en Close", na qual traz alguns haicais escritos com capacidade, dele, de “fotografar” um instante com poucas palavras, algo que se assemelha ao procedimento de Vanice ao “recortar” um rosto numa cena efêmera.
Assim, ainda emocionado por ter lido e aprendido muito sobre essa arte milenar de fazer poesia através de haicais, só tenho a agradecer a poeta e confreira (APB) Vanice Zimerman a oportunidade a mim dada, a fim de que conhecesse outras vertentes desse grandioso e difícil gênero lírico. Assim, seja pela paisagem ou por um lampejo emocional —, conservando a essência minimalista, a arte de Vanice Zimerman se completa entre suas aquarelas, fotografias e Haicais. Parabéns!
Mhario Lincoln é presidente da Academia Poética Brasileira.