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Grande Final do Conto ”Pequeno Dicionário de Mulheres”

Raimundo Fontenele é convidado da Plataforma Nacional do Facetubes.

Mhario Lincoln
Por: Mhario Lincoln Fonte: Raimundo Fontenete
24/03/2025 às 14h13 Atualizada em 24/03/2025 às 14h21
Grande Final do Conto ”Pequeno Dicionário de Mulheres”
Raimundo Fontenele

Raimundo Fontenele

Mulher-esponja

            Na faixa dos quarenta, o homem deve está chegando ao auge das realizações, do sucesso, de suas conquistas. Maturidade, força, experiência, estabilidade financeira, tudo isso representa um pouco da felicidade terrena a que se tem direito quando se a merece por trabalho, luta, esforço.

 

          Pois, nesta etapa de sua vida, Alberto Caronte também tinha alcançado o auge. Do fracasso. Da derrota. Sem trabalho, sem emprego, sem mulher, melhor dizer sem amor, sem residência, sem uma pedra onde repousar a cabeça. Vivendo de favores e migalhas. Comendo as sobras que caíam da mesa de um Escritor Famoso de quem conquistara a amizade e a confiança.

 

          O Escritor Famoso lhe cedeu por empréstimo, e por um tempo determinado, um quarto e sala mobiliado com um fogão, uma geladeira, um sofá-cama, uma cadeira e uma mesa sobre a qual repousava uma velha máquina de escrever, da marca Remington. E também uma TV e um aparelho de videocassete. E um telefone.

 

          Caronte curvou-se para agradecer tamanha generosidade, mas o Escritor Famoso disse que não era preciso agradecer, fazia isso de coração e esperava apenas que Caronte fizesse bom uso do que ele lhe oferecia, e arrematou, sorrindo:

 

          – Principalmente da máquina de escrever. Espero que você possa produzir o tal romance do qual me falou.

          – Mais um romance de mais uma geração perdida, caro amigo – respondeu-lhe Caronte, com um quase sorriso.

 

          Ali instalado, Caronte fazia pequenos serviços de revisão de livros, preparação de originais, tudo bico que o Escritor Famoso conseguia com editores amigos seus e assim ele podia dispor de algum dinheiro para comprar comida, bebida, maconha e pagar uma garota de programa que lhe aliviasse o incontido desejo e fome de sexo, quase um desespero diante de todos os outros desejos que não podia satisfazer.

 

          Os dias escorriam próximos do tédio, de um certo e imenso vazio, desolação e frustrações que o Caronte tratava de apaziguar com doses cavalares de maconha e cerveja. E fitas pornôs que ele alugava numa locadora a duas quadras da residência.

 

          Uma tarde o telefone toca e, ao atender, Caronte escuta uma maviosa e insinuante voz feminina perguntando pelo Escritor Famoso. Logo Caronte engata uma conversa com a gata, explica que o Escritor Famoso não se encontra, mas vai lhe dar o recado que ela queira deixar. Pergunta seu nome e fica sabendo que é Helga e a maviosa voz despede-se prometendo voltar a ligar pra ter notícias do agora amigo comum, o tal Escritor Famoso.

 

          Por coincidência naquela mesma noite o Escritor Famoso passa lá no apê para cobrar uns trabalhos que entregara para o Caronte fazer, a revisão do livro Catatau, que sairia em segunda edição, de um escritor paranaense já granjeando certa fama em nível nacional, o Paulo Leminski. Caronte saiu com mentiras, tentando se justificar do atraso no serviço, tinha estado doente, muito paro furado. E não dizia das horas que ficava fumando, bebendo, vendo filme pornô e se masturbando.

 

          Mudou de assunto e falou sobre a tal Helga que telefonara. O Escritor Famoso disse que não queria mais nada com a mulher, e que o Caronte podia tentar ficar com ela. Era muito boa de cama, e tinha um traseiro como em geral o brasileiro gosta. Caronte assanhou-se todo, ficou logo pensando em como ia atrair a mulher de voz maviosa para uma transa.  E aproveitou para filar um adiantamento, uma grana qualquer, coisa de uns 50 paus e o Escritor Famoso estendeu-lhe a nota de 50 e se mandou dali. Afeto e compaixão, raiva e decepção, eram esses sentimentos que o Caronte o fazia sentir.

 

          Caronte sentiu-se só, amargo, velho, triste. A salvação era a Helga. Um novo amor, o recomeço de uma vida quase perdida. Sim, era isso, mas havia um problema. A tal Helga, a mulher de voz maviosa e insinuante, não havia deixado seu telefone. E se ela não ligasse mais?

 

          No dia desses seus pensamentos o telefone tocou, foi atender e era ela. Tratou de arrancar um encontro, e conseguiu. Ela lhe deu o endereço, num bairro distante do seu, e lá pelas sete da noite no dia seguinte ele tocou a campainha de uma casa de madeira, porta e janela, numa rua meio escura, e ela recebeu-o na sala pouco iluminada, sem móveis à vista, exceto as cadeiras em que se sentaram para conversar.

 

          Ela falou que estava mudando dali no dia seguinte. Caronte sentiu-a evasiva, monossilábica, misteriosa até. Ao despedir-se Caronte pediu seu telefone. Ela respondeu-lhe que não tinha, não podia, que ele aguardasse, ela lhe telefonaria.

 

          Parece que as coisas definitivas chegam sempre sem aviso. Assim Caronte sentia tudo em sua vida. Viveu dias de angústia, parado, perplexo, um trapo que se arrastava pelo piso da casa, uma sombra fitando o teto cheio de enigmas que a fumaça de incontáveis cigarros desenhava como espectros a sua volta. Um poeta escrevera; “quem espera não morre”, e ele agarrava-se a essa espera para não sucumbir de vez.

 

          Uns quinze dias depois, Helga telefonou. Caronte atendeu com o coração em descompasso.  Acertaram que no sábado iriam a uma boate, dançar, beber, conhecerem-se melhor. E assim foi. Terminaram a noite com ela em seus braços naquele sofá-cama do apê em que vivia.

 

          Durante seis meses, a partir daquele dia, sua vida vazia foi preenchida com desespero e espera. Ela ligou um dia e ele foi encontrá-la num shopping. Lá ela estava em companhia de um garoto de mais ou menos doze anos de idade que ela apresentou a Caronte como sendo seu filho.

 

          Ela inventava, mentia, enganava. E Caronte ali. Pronto e ao seu dispor. Trabalhando duro, recebia o dinheiro das tarefas que fazia das mãos do Escritor Famoso e esse dinheiro, claro, ia quase todo parar nas mãos da mulher de voz maviosa e insinuante.

 

          Chegou novembro, e ela, num desses encontros com Caronte, apresentou-lhe mais uma cria: uma menina de seus seis anos de idade. Caronte fervia de raiva por dentro, nem tanto pela existência da filha, mas por Helga haver escondido a informação durante tanto tempo.

 

          E poucos dias depois veio com mais uma bomba pra cima de Caronte: estava grávida. Na maior cara de pau, falou que nem sabia se o filho era dele, pois tinha um cara que havia sido seu namorado, pai dos outros dois filhos que, volta e meia, aparecia em sua casa e a obrigava a ter relações com ele.

 

          Caronte parou de beber e embriagar-se. Lúcido e sóbrio podia ver melhor a extensão e profundidade do buraco em que estava metido. Sabia que aquela mulher, igual a uma esponja, o estava sugando por inteiro. O dinheiro e seu equilíbrio emocional. Sugava sua dignidade e sua vergonha. E pedia presentes, agora para si e para os filhos.

 

          Caronte jurava que aquela era última vez. Mas lá se vinha uma ligação telefônica da voz macia e insinuante e ele, qual um pobre diabo faminto, um cão de rua, ia correndo para atender os desejos e caprichos daquela mulher que, em troca, lhe oferecia alguns minutos de sexo. Nem afeto ou carinho havia.

 

           A última de Helga foi dizer a Caronte que iam viver juntos. Ele exultou de alegria. Ela pediu dinheiro adiantado para alugar uma casa. Caronte recorreu ao Escritor Famoso que já nem suportava mais a loucura de Caronte. Queria ver-se livre dele o mais depressa possível e por isso lhe arranjou o dinheiro pedido.

 

          Dias depois Caronte foi encontrar-se com Helga e quando a viu ao lado dos filhos, ambos vestindo roupa nova, calçados novos, sentiu que o dinheiro do aluguel da casa estava ali diante de seus olhos. E era verdade. Ela jogou na sua cara que ele havia demorado pra arranjar o dinheiro e quando chegou na proprietária ela já alugara a casa pra outro inquilino. Mais uma mentira que Caronte engoliu em seco, mas que ficou atravessada no seu peito, fervendo no seu sangue, martelando seu cérebro qual uma bigorna infernal.

 

          Numa noite quente, estavam os dois, Caronte e Helga, na Boite Revollution, tomando cerveja e ouvindo o Simply Red cantar seu pop adocicado Never Never Love, muito apropriado para o momento romântico que estavam vivendo, ou melhor dizendo, aquele momento em que Caronte procurava tapar o sol com a peneira, fazer de contas que Helga nutria por ele também a mesma paixão que ele sentia por ela. Dançar não dançavam. Mas beijavam-se e bolinavam-se no escuro do salão onde se aturdiam com aquela Porteña gelada.

 

          – Você precisa me dar o seu telefone. Assim não suporto mais... – ele falou sabendo que suportaria sim, até o inferno, por aquele anjo de carne morena que às vezes, quando lhe interessava, deitava-se com ele e se oferecia por inteiro.

 

          – Não posso. Olha, tem o bip, compra um que aí a gente pode se comunicar quando você quiser – respondeu Helga.

 

          Estávamos ainda na idade pré-celular e tinha aparecido no mercado esse tal de Bip, um aparelhinho que só servia pra mensagens. Mas era melhor do que nada, pensou Caronte. Assim ele podia se dirigir a ela quando desejasse e não apenas ficar esperando um telefonema quando ela bem quisesse.

 

          Caronte comprou, então, o tal do Bip, habilitou-o e entregou-o à Helga, porém a conta era em seu nome. E deu certo, no início. Caronte passava as mensagens de um telefone fixo, e em seguida Helga ligava pra ele, que matava as saudades imensas, tão grandes quanto o seu vazio interior.

 

          Menos de um mês durou essa satisfação de Caronte. Um dia ao passar a mensagem recebeu de volta uma ligação de uma voz feminina que dizia ser a mãe de Helga. E ao encontrar-se com ela Caronte cobrou uma explicação, e ela lhe respondeu que como tinha que trabalhar e deixava seus filhos com sua mãe, nada mais justo que deixar o aparelho de mensagens com ela, pois qualquer problema com um dos filhos sua mãe poderia lhe avisar. E finalizou, com um sorriso que Caronte já achava que fosse puro desdém:

          – Sabe como é, crianças estão sempre sujeitas a algum acidente...

          – E eu, como é que eu fico? E nossa comunicação? Afinal comprei esse maldito Bip pra gente se comunicar – retrucou Caronte.

          – Deixa de ser egoísta, cara, tu só pensa em ti. E as crianças?

          – Caronte, meu nome é Caronte, não vem me chamar de cara. Egoísta, eu? Todo dinheiro que tenho ganho ultimamente vai todo parar em tuas mãos. Que saco!

 

          E Caronte saiu do encontro fulo de raiva, prometendo-se que tinha que se livrar dessa paixão obsessiva, que só lhe trazia o mal.

 

          As festas natalinas se aproximavam e bem próximo à data cristã Helga pediu um sapato branco de presente para Caronte. Lá foi ele recorrer a mais um adiantamento ao Escritor Famoso que, a contragosto lhe arranjou o dinheiro, mas deixou transparecer para Caronte que estava de saco cheio e que não ia mais suportar vê-lo como marionete nas mãos daquela “piranha”.

 

          Pensam que ela agradeceu o sapato caríssimo que Caronte lhe presenteou? Uma ova! Pôs um monte de defeito, que o solado não estava de acordo com o que ela queria. Sapato branco, mas com o solado vermelho.

 

          – Mas você não me falou em cor de solado... – objetou Caronte, mas ela já mudou de assunto e foi com a história do aluguel da casa.

          – É, Caronte, mas e a casa, vais alugar ou não? Se quiseres continuar comigo, vamos ter que alugar essa casa de vez e irmos viver juntos. Ou isso ou adeus tia Chica! – E falou isso com uma espécie de sorriso de escárnio que tanto mal causava ao Caronte. Aquele riso lhe dava nos nervos.

          – Adeus tia Chica!? Você não tem uma expressão menos chula pra se expressar, não?

          E ela:

          – Não enche, Caronte!

 

          Tão logo passou o Natal, Caronte jurou pra si mesmo que não ia emplacar o Ano Novo naquela angústia e sofrimento que a relação com Helga lhe causava. Então ligou pra ela dizendo que havia encontrado a casa para alugar e convidou-a a ir com ele na manhã seguinte pra olharem o imóvel.

 

          Caronte havia descoberto que ela tinha um irmão barra pesada, aliás os amigos, as companhias de Helga não eram nenhuma flor que se cheirasse. Por isso quando foi se encontrar com ela num bairro afastado do centro, onde Caronte dissera que se localizava a casa, carregava uma faca numa pasta de couro, disposto a tudo, e a arma era para se defender caso ela fosse com seu irmão ou algum amigo, e Caronte agora não confiava mais nela nem um pouco e a considerava capaz de qualquer baixaria.

 

          Ela veio sozinha. Enveredaram por uma rua do bairro e de repente Caronte parou e se dirigiu a ela com voz firme e determinada:

          – Helga, me passa o aparelho, o tal Bip, pra mim nosso caso ta acabado, chega, não quero mais nada contigo.

          – Mas o que é isso? Que bicho te mordeu? – pela primeira vez Caronte notou nela uma preocupação verdadeira. Era pela grana que não teria mais da parte dele ou, sem perceber, sem se dar conta, nutria por ele já alguma espécie de querer?

          – Mas, e o neném? Tu não sabe que estou grávida?

          – Ora, essa criança nem é minha. Olha o tamanho dessa barriga!? Não importa, me passa o bip...

          – Não... não faz isso, cara. Como vou poder me comunicar com minha mãe? Não vou te dar...

          – Ah, não? Helga, o aparelho está no meu nome, a conta vem sempre para o meu endereço. Basta eu deixar de pagar que esse bip ficará sem serviço, mudo, não vai te adiantar pra nada.

 

          Enfim, contrariada e incrédula, ela retirou o aparelho de sua bolsa e o entregou a Caronte, que recolheu o aparelho, e se mandou dali em direção à parada de ônibus mais próxima, em direção ao centro, com Helga seguindo-lhe e proferindo palavras que ele nem ouvia.

 

          Entraram no mesmo ônibus, mas Caronte sentou-se num banco parcialmente ocupado e ela foi sentar-se noutro, distante do seu. Quando o ônibus entrou na Avenida Assis Brasil, Caronte fez sinal e desceu. Nem bem andara uma quadra e o tal do bip tocou.

 

          Caronte acionou o bip para ler a mensagem e o sangue fervente turvou-lhe a visão e a mente. A mensagem era de um tal de Henrique, de Rio Grande, para “Vânia”, comunicando-lhe que chegaria no dia seguinte e terminava com um “beijos, querida”.

 

          Caronte andou uns passos, seus olhos se encheram de lágrimas, e ele começou a ouvir uma música que lhe trazia algumas lembranças boas, alegres, se não amorosas, pelo menos ardentes: Paris Paris, na voz de Catherine Deneuve. Algumas transas com Helga tiveram essa música como trilha sonora. E ele sabia que mesmo lhe trazendo recordações amargas essa música passaria a fazer parte dos sons que iria ouvir para sempre: murmúrios das águas dos rios, trinado de pássaros em florestas encantadas, choros de criança nascendo, farfalhar das folhas das árvores tocadas pelo vento, vozes do amor, vozes da vida…

The end

 

 

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