Por Socorro Guterres
Um pensador inovador, muitas vezes incompreendido. Um pensador explosivo munido de aforismos certeiros como flechas muito bem direcionadas. Nas minhas idas às livrarias me deparei recentemente com uma biografia sobre Friederich Nietzsche, de autoria da escritora inglesa Sue Prideaux. Adquiri já no frenesi da leitura que me faria rememorar algumas obras dele que estão na minha estante em posição de destaque, como num convite à releitura.
Nascido em 15 de outubro de 1844 na Prússia, atual Alemanha, Nietzsche era filho de um ministro luterano que morreu precocemente aos 36 anos de idade, após ter enlouquecido um ano antes. Assim, Nietzsche foi criado num meio estritamente feminino, com sua mãe, Franziska, e sua irmã, Elisabeth, que esperavam vê-lo seguir os passos do pai e entrar para a igreja. Inteligentíssimo, após formar-se nos estudos ginasiais da instituição educacional Pforta, em 1864 foi para a Universidade de Bonn onde estudou Teologia e Filologia Clássica. Posteriormente, abandonou a Teologia, transferindo-se para Leipzig, onde recebeu a influência de O mundo como vontade e representação, do filósofo Arthur Schopenhauer. Ainda como estudante, foi chamado para assumir a cadeira de Filologia Clássica na Universidade da Basileia, aos 24 anos de idade, tal seu grau de excelência, embora ainda não tivesse concluído o doutorado. Na função de professor, vestia- se como velho, a personificar uma roupagem de sabedoria que a idade tão jovem dificilmente condiziria. Nessa universidade conheceu o compositor Richard Wagner que também o influenciou fortemente, numa espécie de embriaguez dionisíaca, expressão que veremos mais adiante, até que o antissemitismo do músico levou Nietzsche a romper a amizade.
Sob a influência Schopenhaueriana e Wagneriana, Nietzsche redigiu seu primeiro livro, O nascimento da tragédia no espírito da música, discorrendo sobre a tragédia grega e sua importância no presente e no futuro da cultura, isto quando ele tinha apenas 28 anos. Nesse livro, o pensador introduz dois conceitos que se estenderiam por suas escrituras: o princípio dionisíaco (caos, sonho, embriaguez), presentes na música e na tragédia; e o princípio apolíneo (ordem e atribuição da forma), que traria a representação schopenhaeuriana da beleza e da aparência. Nessa dualidade, a arte, numa perspectiva grega, tornava esses dois princípios compatíveis.
Aos poucos, Nietzsche inclinou-se da Filologia para a Filosofia numa abordagem existencialista. É claro que aqui, nesta conversa filosófica, não nos aprofundaremos em temas tão complexos no qual o filósofo expõe conceitos polêmicos, como “Deus está morto”. Apenas vaguearemos por algumas de suas obras mais famosas. Surge, então, Humano, Demasiado Humano, em que Nietzsche praticamente contradiz suas reflexões do livro anterior, afastando-se definitivamente da metafísica romantizada de Schopenhauer e Wagner. E por estar cada vez mais impossibilitado de ler ou escrever, devido a crescente miopia, bem como outras enfermidades que o acometiam, procurou na brevidade novos caminhos para seus escritos, dispondo nesse livro “para espíritos livres”, cerca de 1400 aforismos, cuja temática é a condição humana. O anticristianismo contido em sua obra criou conflitos familiares para Nietzsche. Porém, é importante ressaltar que o filósofo preservava a figura de Jesus Cristo, criticando especificamente a religião que depois se originou em seu nome. Na verdade, Nietzsche condenava a Igreja e os padres, no que poderia ter sido cunhado o termo ressentiment.
Perambulou por muitas cidades, em busca de climas que o ajudassem nas crises constantes de seus múltiplos males, que inclusive o levaram a afastar-se do ensino universitário. Dentre as tantas conjecturas surgidas nesse percursos, está a concepção da ideia do Eterno Retorno que, sucintamente, dispunha o mundo em um eterno fluxo, com resultados que se repetiriam. Na verdade, este princípio é o mais enigmático de toda a filosofia nietzschiana, interligando-se à vontade de potência numa espécie de amor fati (amor ao destino).
Nessa abordagem rápida sobre o excepcional pensador não poderíamos deixar de falar sobre o encantamento feminino, sobretudo na figura da bela e intelectual Lou Salomé, cuja obsessão amorosa, embora infrutífera, deixou reflexos no seu renomado livro posterior, A Gaia Ciência, no qual enumera aforismos sobre mulheres numa forma positiva, o que não se repetiria comumente em outras obras. Interessante ressaltar também que ao final de A Gaia Ciência já aparece Zaratustra que dará início a sua mais poética e famosa obra, Assim falava Zaratustra, cujo personagem aparece como padrão de um “homem superior” ou o Super-Homem, o übermench, que desce da montanha para falar ao homem comum. Retomando a ideia da morte de Deus, talvez a mais famosa desse autor, não se trata apenas da morte de uma deidade, mas também da morte de valores elevados que herdamos, ou seja, a morte da fé. Essa perspectiva está intimamente relacionada à ideia do homem como algo a ser superado, além de trazer a concepção de moralidade de Nietzsche. O conceito de super-homem muitos anos depois entraria erroneamente na retórica do nazismo, reforçado na postura de sua irmã Elisabeth, que assumiu o controle dos arquivos de Nietzsche, depois que ele sucumbiu à loucura, permitindo aos nazistas distorcer as ideias do pensador.
Dentre tantos textos deixados pelo filóloso-poeta, poderíamos encerrar este flanar com Além do Bem e do Mal, livro de 1886. Polêmica e representativa, esta obra é também a primeira da chamada “fase destrutiva” de Nietzsche em que ele questiona toda a filosofia ocidental colocada em prática até a sua época, versando prioritariamente sobre a precariedade cultural e espiritual do seu tempo. Segundo o pensador, o homem deveria se reerguer e afirmar-se no gozo e na dor de suas próprias verdades e discernir em novas perspectivas sobre o bem e sobre o mal. Como forma complementar a Além do Bem e do Mal, Nietzsche escreveu Genealogia da Moral, com críticas às ideologias tradicionais religiosas e filosóficas ocidentais.
Caro leitor, que acompanhou até aqui estas linhas, foram só algumas veredas, ou metaforicamente falando, algumas subidas às montanhas que Nietzsche tanto amava. Mas, antes de virarmos a página, que certamente há de retornar em novas leituras, lembro do nosso Guimarães Rosa (a quem dediquei anos de estudos acadêmicos), que assim como Nietzsche dispõe uma visão heraclitiana do vir a ser, da dualidade, do tudo é e não é. Contudo, para uma percepção ainda mais intimista de Nietzsche, fica a sugestão de Ecce Homo, escrito durante o agravamento das doenças e do transtorno mental, que culminaram na morte do filósofo, em 25 de agosto de 1900. Neste belo livro aforístico ele revela: “Eu não sou um homem, sou dinamite”. Assim, traduzindo o título desse livro autobiográfico, síntese inestimável da obra deste pensador dos mais influentes da época moderna, em que retrata a si mesmo, podemos, enfim, mais uma vez resumidamente dizer, numa concordante tradução do título: “Eis o homem”.