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Meu dilema ao ler e reler “Frágeis Artefatos”, do poeta Rogério Rocha

Mhario Lincoln é jornalista, poeta e presidente da Academia Poética Brasileira.

Mhario Lincoln
Por: Mhario Lincoln Fonte: Mhario LIncoln
15/04/2025 às 09h39 Atualizada em 15/04/2025 às 09h58
Meu dilema ao ler e reler “Frágeis Artefatos”, do poeta Rogério Rocha

Mhario Lincoln

 

Geralmente, carrego certos paradoxos na minha alma de resenhista. Quando me deparo com dois ou três livros do mesmo autor, para uma análise pessoal e intransferível, costumo perceber uma dicotomia (não necessariamente complementar) entre as obras. Muitas vezes, alguns textos, palavras ou poemas se mostram reaproveitáveis, mas não dentro do contexto literário inicial — com o que chamo de “cabeça, tronco e membros da lírica pessoal”, como escreveu Olinto Simões ao resenhar meus dois livros Segredos Poéticos e A Bula dos Sete Pecados. Ele comentou que aqueles dois livros “pareciam complementares ou repetiam versões anteriores”.

 

Pois bem, com Frágeis Artefatos, de Rogério Rocha, é diferente. Eu havia lido o espetacular A Linguagem da Ausência, lançado há alguns meses, e cheguei a supor que essa nova coletânea funcionaria como um complemento lógico. Mas não é isso. (Há, inclusive, uma reportagem sobre A Linguagem da Ausência, escrita pela colunista e poeta Joizacawpy Costa, em:
Joizacawpy Costa/A Linguagem da Ausência

 

Neste caso, Rogério surpreende ao reinventar seu universo poético, inserindo-se nele através da palavra. Os versos são simultaneamente cortantes e etéreos, compondo um painel da existência contemporânea marcado por inquietações sobre a liquidez das relações humanas. Em “Armagedom”, por exemplo, o verso “espalhou as traças pelas portas das casas” traz uma crítica implícita à corrosão das estruturas simbólicas do cotidiano — do lar ao juízo — em uma época de barbárie social.

 

A obra é tão múltipla que me faz perceber o quanto a inquietude do poeta se aproxima da filosofia de Zygmunt Bauman (a quem fui apresentado pelo poeta João Batista do Lago), sobretudo no ponto em que discute o “desconforto de viver em uma sociedade que expõe as feridas da desigualdade”. Nesse sentido, também há uma ligação existencial com Albert Camus — referência que me chegou por Olinto Simões — especialmente pela recusa de aceitar o absurdo sem insurgir-se contra ele.

 

Isso se manifesta em diversas passagens, particularmente em “A Mulher de Deus”, poema que, ao atribuir ao divino um toque feminino criador, subverte a teologia patriarcal e recria o sagrado em chave poética:

 

“(...) a mulher de Deus soube / como ninguém saberia / inventar de novo o dia”.

 

Essa “reinvenção do dia” é um gesto quase demiúrgico do próprio poeta e me remete a “segunda inocência” de Paul Ricoeur — um retorno poético ao sagrado depois do desencanto racional.

 

Igualmente fiquei impressionado com “O Mundo é para quê?”, onde a força do poema está na analogia com a criança despojada em um mundo ainda incompreensível, levantando uma das questões mais antigas da existência e que eu me questiono quase todos os finais dos dias, após esforço descomunal para interagir com a humanidade: qual o sentido de existir e aprender neste universo tão distante de si mesmo?

 

“O bebê varre o chão
com suas pernas
curtas
com suas pernas
tortas
O bebê leva a mão
à boca suja
e nela põe tudo
o que surja:
um pedaço de corda
massa de modelar
a banana podre
que caiu da mesa
O bebê não sabe
o sim
nem mesmo
o não
troca
o certo
pelo errado
e luta sem dentes
contra o que ignora (...)”.

 

De imediato, recordo Paul Sartre e me questiono: a criança encarnaria a liberdade absoluta de criar significados antes de ser moldada pelo olhar alheio? Há, nesses versos — como em boa parte do livro — uma gangorra de pensamentos, ideias e lógicas que ultrapassam a realidade meramente racional, pois a dimensão social ali contida revela situações explícitas, não só retóricas.

 

O desamparo do bebê, que “varre o chão” com pernas frágeis e põe na boca tudo o que encontra, da corda à banana podre, escancara desigualdades e negligências sofridas por tantas crianças. É como se fosse um grito de alerta. Contudo, e aqui está o diferencial, Rocha separa o joio do trigo: embora se trate de uma poesia social, não vemos qualquer traço de panfletarismo. Isso é sensacional, pois leio um poeta que transcende o individual e se lança rumo ao coletivo — sem ser panfletário.

 

Por tudo isso, deixo-me embriagar pelos axiomas que emergem da força imersiva de Frágeis Artefatos, o que me motiva ainda mais a estudá-lo. Vale dizer que as ideias líricas de Rogério, neste livro, apontam caminhos “certos” ou “errados”, mas nunca indiferentes, pois todas se inserem num contexto universal.

 

E convido quem lê a esta epístola, a mergulhar: “Menina da praia / seminua / sai do mar (…) / Não conhece a vida / só sabe da labuta / nas salas da academia / dos likes do Instagram / da meia-noite ao meio-dia”. Aqui, ele explicita a passagem da experiência real para a busca incessante de validação virtual, onde a liberdade torna-se palco de um espetáculo em que o corpo é exposto e avaliado pelos “likes” das redes sociais. E essa, hoje em dia, é a mais pura da realidade o que mostra um poeta com tutoriais modernistas, além de seu tempo, quando usa temas ultramodernos, sem perder o mando clássico de quem lê e aprende poesia todo dia.

 

Uma prova de que Rogério Rocha se adapta às nomenclaturas do hoje, mas conserva a beleza da construção clássica, mostrando ser dono de uma educação filopoética sólida, fato que o imuniza de retóricas repetitivas ou insólitas, conservadoras e inodoras. E tudo isso, sem quaisquer que sejam as dúvidas, em razão dos conhecimentos que fervilham em seus poros, resultados de muito estudo e dedicação. Eu admiro Rogerio Rocha. Por isso, é sempre um dos que coloco em meu contexto, quando ouso escrever poesias.

 

Aliás, a ênfase na “labuta nas salas da academia” e nos “likes do Instagram” escancara a pressão social por moldar corpo e identidade na lógica dos algoritmos e padrões artificiais de beleza mostra uma preocupação sociológica dele. Porém, sem virar panfleto. Essa é a razão da minha escrita livre sobre Rocha, porque a minha narrativa não é contaminada por ideologias de qualquer ordem.

 

Bom. Então qual o poeta que escreve versos sem qualificar ou citar o ‘amor’? Em Frágeis Artefatos o amor também está presente. Mas aqui ele surge de forma distinta da rima fácil “amor & dor” ou “amor & pudor”. Digo que a poesia de Rogério é extracurricular porque quando ele resmunga amor, o faz com características únicas:

 

“o amor como forma / é esse fogo / esse plus / ora doce / ora amargo / que nos destrói / ao tempo / em que nos seduz”.

 

Sensacional: há uma prova contundente do quaestio facti / quaestio juris fazendo esse poema exceder a dimensão do habitual.

 

Há um charme nesse “fogo” que seria indescritível em termos lógicos. (Magnífico para a poética!). Arrisco dizer que até Arquimedes, se lesse, tentaria achar a fórmula exata para equilibrar o doce e o amargo. Mas, como bom matemático, provavelmente concluiria que essa força transcende qualquer cálculo e talvez exclamasse “Eureka!”, tal qual eu grito agora, cheio de admiração: ‘Uau’!

 

O autor parece dançar em volta das palavras permitindo ao leitor criar infinitas imagens, possibilitando surgir sentidos diversos para um único poema, independentemente do tempero que ele próprio planejou. Essa abertura é uma técnica típica dos grandes poetas que pesquiso: criar “abas invisíveis” para que cada leitor interprete a seu modo. A poesia de Rogério Rocha se assemelha, portanto, a um mar em que ele mesmo surfa em ondas grandes e pequenas, até imensas, distribuindo conhecimento e convertendo-o em cálcio irradiado, fortificando sua lírica madura, livre de linguagens viciadas.

 

Percebo claramente que Rogério Rocha lê outros poetas para amadurecer seu “dom” e expressar seus sentimentos com maior consistência. Drummond, Quintana, Coralina, Manoel de Barros, Bandeira. Fiquei abismado com a linguagem, de simplicidade aparente, mas de profunda ternura, que se eleva em voo e resgata memórias. Algo puro, porém concreto. Por essa razão, tomo a liberdade de citar Viriato da Cruz, poeta angolano, onde a natureza e a terra são metáforas importantes sua produção lírica, evocando a infância como um período de esperança e renovação. Uma poética telúrica explorando a relação entre a infância e a terra, com destaque para a vivência e as memórias. Da mesma forma que Rocha, em insight espetacular, escreve:

 

“dia desses vi / a alma de / um passarinho / no peito / de uma criança / desataram-se em mim / as mais doces lembranças”.

 

Rogério Rocha e "A Linguagem do Silêncio".

É como se a imagem do pássaro aninhado no peito infantil rompesse a narrativa com uma delicadeza capaz de despertar um sopro de infância permanente. A criança ganha asas e nos revela, em um flash, liberdade e fragilidade — ambas transformadas em memória ao longo do tempo. Uma exuberância lírica que faz do instante algo eterno. Arrisco dizer que Manoel de Barros e Viriato da Cruz ficariam encantados.

 

E como a poesia ela é inatura e dolorida, forte e dócil, amável e reclamante, Frágeis Artefatos também traz em seu bojo ecos que se circunvizinham com a lâmina de um Nauro Machado. Em “Esqueletos”, por exemplo, a imagem de ossadas dançantes e sombras finas deitadas nuas sobre frutas cruas confere à poesia um tom onírico e sombrio, lembrando o mergulho de Nauro no sentido da vida, do corpo e de sua finitude.

 

É uma poesia que encara a precariedade humana e a iminência do fim, mas mergulha em imagens intensas, quase pictóricas, para traduzir o desconforto. Vejo, nisso, uma aproximação do metafísico, que é própria de Nauro Machado — difícil, inclusive, de encaixar em reflexões superficiais, mas não, em estiletes interiores que rasgam o existencial da escrita, como o fez Rocha.

 

Assim, versos como “não há provas da existência daquela/ que destruiu seus amores verdadeiros” me remetem às visões cruas de Nauro (ou até mesmo de Cruz e Souza), numa vertigem de niilismo. Em vários trechos de Frágeis Artefatos, encontro esse ‘reforço estético’ que explora a dor como matéria-prima da lucidez; e não como mero ornamento.

 

E mais: impossível não aplaudir Rogério, que revela uma fúria linguística invejável. Isso é flagrante em “Menina Vazia”, onde o sujeito poético transita por um terreno psicológico turvo:

 

“Menina vazia/ menina das festas/ não quer amar/ nem quer afeto/ só gosta do sexo/ do gozo dos gastos/ de um cartão de crédito”.

 

Aqui, a psicologia existencialista se faz presente. O corpo sem projeto lembra Sartre (“a existência precede a essência”) — vida sem propósito que se converte em abandono. E, em “Dignidade”, a força de quem avisa, como uma resistência ética (evoé, Espinoza!). Possivelmente o poema mais silencioso da obra, embora impacte como um estrondo. Porque mexe com as entranhas mentais, e não apenas são conselhos inapecadores:

 

“(...) dignidade é necessária
para que a fome não te mate
para que não te roube
o pobre irmão de vícios
aquele a quem
as horas deixaram
das virtudes os resquícios
para que infames não tomem
teus últimos centavos
para que persigas a felicidade
na existência autêntica.”

 

A “dignidade” em Rocha me recorda Espinosa e seu conceito de conatus — o esforço de cada ser em perseverar na própria essência. Somente ao manter-se íntegro é que o indivíduo não apenas sobrevive, mas floresce em meio às pressões externas. A dignidade torna-se, então, expressão prática dessa perseverança, garantindo que não se perca a liberdade mesmo diante da opressão e da carência.

 

O poema ainda faz menção aos “pobres irmãos de vícios” e aos “infames”, pintando um retrato de desejos incontroláveis que, segundo Espinosa, podem aprisionar a mente humana. Quando a alma se entrega cegamente a esses impulsos, rompe-se a harmonia entre razão e vida virtuosa.

 

Destarte, o poema “Dignidade” reflete essa tensão, mostrando que somente a autenticidade nos protege dessas seduções que roubam bens materiais e, pior, a própria dignidade.

 

Este livro, portanto, não se resume a um amontoado de poemas, mas se transforma numa verdadeira travessia. Uma travessia pelos lampejos da mente humana, carregando o verbo, do caos à estética. E Rogério Rocha demonstra que pode chegar bem longe — desde que continue recolhendo o mel do início para quem sabe, “inventar de novo, o dia”.

 

*Mhario Lincoln é presidente da Academia Poética Brasileira.

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Rogerio RochaHá 6 dias São LuísUm primor de texto, com uma análise apurada sobre elementos que permeiam o livro em sua complexidade. Meu muito obrigado a você, Mhario. De coração.
Luana SerraHá 7 dias Natal RGNJá mandei fazer uma plaquinha com imã para colocar em minha geladeira. Uma definição de amor igual a eu mesma. "o amor como forma / é esse fogo / esse plus / ora doce / ora amargo / que nos destrói / ao tempo / em que nos seduz".
A.T.R.Há 7 dias BelémPAConcordo JU. O dilema é esse. Raras são as pessoas que amadureceram até o estágio de serem companheiros, não donos "de um negócio". Até quando Brasil....
Ju Lino (Coifffeur/Brasília)Há 7 dias DFMhario viajou legal nesse texto. E fez a gente ir a tantos lugares que estão escondidos dentro de nossas mentes e a gente nem sabe. Rocha, adorei, "só gosta do sexo/ do gozo dos gastos/ de um cartão de crédito". Acabo de sair de uma péssima relação. E com nós, gays, ainda cho pior, sabe?
Ana Maria Braga Nunes, poetisa e escritora.Há 7 dias Rio de Janeiro RJConcordo com a célebre frase de Nicanor Parra: “a poesia é um artigo de primeira necessidade”. Com toda certeza, Rogério Rocha.
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