Mhario Lincoln
Geralmente, carrego certos paradoxos na minha alma de resenhista. Quando me deparo com dois ou três livros do mesmo autor, para uma análise pessoal e intransferível, costumo perceber uma dicotomia (não necessariamente complementar) entre as obras. Muitas vezes, alguns textos, palavras ou poemas se mostram reaproveitáveis, mas não dentro do contexto literário inicial — com o que chamo de “cabeça, tronco e membros da lírica pessoal”, como escreveu Olinto Simões ao resenhar meus dois livros Segredos Poéticos e A Bula dos Sete Pecados. Ele comentou que aqueles dois livros “pareciam complementares ou repetiam versões anteriores”.
Pois bem, com Frágeis Artefatos, de Rogério Rocha, é diferente. Eu havia lido o espetacular A Linguagem da Ausência, lançado há alguns meses, e cheguei a supor que essa nova coletânea funcionaria como um complemento lógico. Mas não é isso. (Há, inclusive, uma reportagem sobre A Linguagem da Ausência, escrita pela colunista e poeta Joizacawpy Costa, em:
Joizacawpy Costa/A Linguagem da Ausência
Neste caso, Rogério surpreende ao reinventar seu universo poético, inserindo-se nele através da palavra. Os versos são simultaneamente cortantes e etéreos, compondo um painel da existência contemporânea marcado por inquietações sobre a liquidez das relações humanas. Em “Armagedom”, por exemplo, o verso “espalhou as traças pelas portas das casas” traz uma crítica implícita à corrosão das estruturas simbólicas do cotidiano — do lar ao juízo — em uma época de barbárie social.
A obra é tão múltipla que me faz perceber o quanto a inquietude do poeta se aproxima da filosofia de Zygmunt Bauman (a quem fui apresentado pelo poeta João Batista do Lago), sobretudo no ponto em que discute o “desconforto de viver em uma sociedade que expõe as feridas da desigualdade”. Nesse sentido, também há uma ligação existencial com Albert Camus — referência que me chegou por Olinto Simões — especialmente pela recusa de aceitar o absurdo sem insurgir-se contra ele.
Isso se manifesta em diversas passagens, particularmente em “A Mulher de Deus”, poema que, ao atribuir ao divino um toque feminino criador, subverte a teologia patriarcal e recria o sagrado em chave poética:
“(...) a mulher de Deus soube / como ninguém saberia / inventar de novo o dia”.
Essa “reinvenção do dia” é um gesto quase demiúrgico do próprio poeta e me remete a “segunda inocência” de Paul Ricoeur — um retorno poético ao sagrado depois do desencanto racional.
Igualmente fiquei impressionado com “O Mundo é para quê?”, onde a força do poema está na analogia com a criança despojada em um mundo ainda incompreensível, levantando uma das questões mais antigas da existência e que eu me questiono quase todos os finais dos dias, após esforço descomunal para interagir com a humanidade: qual o sentido de existir e aprender neste universo tão distante de si mesmo?
“O bebê varre o chão
com suas pernas
curtas
com suas pernas
tortas
O bebê leva a mão
à boca suja
e nela põe tudo
o que surja:
um pedaço de corda
massa de modelar
a banana podre
que caiu da mesa
O bebê não sabe
o sim
nem mesmo
o não
troca
o certo
pelo errado
e luta sem dentes
contra o que ignora (...)”.
De imediato, recordo Paul Sartre e me questiono: a criança encarnaria a liberdade absoluta de criar significados antes de ser moldada pelo olhar alheio? Há, nesses versos — como em boa parte do livro — uma gangorra de pensamentos, ideias e lógicas que ultrapassam a realidade meramente racional, pois a dimensão social ali contida revela situações explícitas, não só retóricas.
O desamparo do bebê, que “varre o chão” com pernas frágeis e põe na boca tudo o que encontra, da corda à banana podre, escancara desigualdades e negligências sofridas por tantas crianças. É como se fosse um grito de alerta. Contudo, e aqui está o diferencial, Rocha separa o joio do trigo: embora se trate de uma poesia social, não vemos qualquer traço de panfletarismo. Isso é sensacional, pois leio um poeta que transcende o individual e se lança rumo ao coletivo — sem ser panfletário.
Por tudo isso, deixo-me embriagar pelos axiomas que emergem da força imersiva de Frágeis Artefatos, o que me motiva ainda mais a estudá-lo. Vale dizer que as ideias líricas de Rogério, neste livro, apontam caminhos “certos” ou “errados”, mas nunca indiferentes, pois todas se inserem num contexto universal.
E convido quem lê a esta epístola, a mergulhar: “Menina da praia / seminua / sai do mar (…) / Não conhece a vida / só sabe da labuta / nas salas da academia / dos likes do Instagram / da meia-noite ao meio-dia”. Aqui, ele explicita a passagem da experiência real para a busca incessante de validação virtual, onde a liberdade torna-se palco de um espetáculo em que o corpo é exposto e avaliado pelos “likes” das redes sociais. E essa, hoje em dia, é a mais pura da realidade o que mostra um poeta com tutoriais modernistas, além de seu tempo, quando usa temas ultramodernos, sem perder o mando clássico de quem lê e aprende poesia todo dia.
Uma prova de que Rogério Rocha se adapta às nomenclaturas do hoje, mas conserva a beleza da construção clássica, mostrando ser dono de uma educação filopoética sólida, fato que o imuniza de retóricas repetitivas ou insólitas, conservadoras e inodoras. E tudo isso, sem quaisquer que sejam as dúvidas, em razão dos conhecimentos que fervilham em seus poros, resultados de muito estudo e dedicação. Eu admiro Rogerio Rocha. Por isso, é sempre um dos que coloco em meu contexto, quando ouso escrever poesias.
Aliás, a ênfase na “labuta nas salas da academia” e nos “likes do Instagram” escancara a pressão social por moldar corpo e identidade na lógica dos algoritmos e padrões artificiais de beleza mostra uma preocupação sociológica dele. Porém, sem virar panfleto. Essa é a razão da minha escrita livre sobre Rocha, porque a minha narrativa não é contaminada por ideologias de qualquer ordem.
Bom. Então qual o poeta que escreve versos sem qualificar ou citar o ‘amor’? Em Frágeis Artefatos o amor também está presente. Mas aqui ele surge de forma distinta da rima fácil “amor & dor” ou “amor & pudor”. Digo que a poesia de Rogério é extracurricular porque quando ele resmunga amor, o faz com características únicas:
“o amor como forma / é esse fogo / esse plus / ora doce / ora amargo / que nos destrói / ao tempo / em que nos seduz”.
Sensacional: há uma prova contundente do quaestio facti / quaestio juris fazendo esse poema exceder a dimensão do habitual.
Há um charme nesse “fogo” que seria indescritível em termos lógicos. (Magnífico para a poética!). Arrisco dizer que até Arquimedes, se lesse, tentaria achar a fórmula exata para equilibrar o doce e o amargo. Mas, como bom matemático, provavelmente concluiria que essa força transcende qualquer cálculo e talvez exclamasse “Eureka!”, tal qual eu grito agora, cheio de admiração: ‘Uau’!
O autor parece dançar em volta das palavras permitindo ao leitor criar infinitas imagens, possibilitando surgir sentidos diversos para um único poema, independentemente do tempero que ele próprio planejou. Essa abertura é uma técnica típica dos grandes poetas que pesquiso: criar “abas invisíveis” para que cada leitor interprete a seu modo. A poesia de Rogério Rocha se assemelha, portanto, a um mar em que ele mesmo surfa em ondas grandes e pequenas, até imensas, distribuindo conhecimento e convertendo-o em cálcio irradiado, fortificando sua lírica madura, livre de linguagens viciadas.
Percebo claramente que Rogério Rocha lê outros poetas para amadurecer seu “dom” e expressar seus sentimentos com maior consistência. Drummond, Quintana, Coralina, Manoel de Barros, Bandeira. Fiquei abismado com a linguagem, de simplicidade aparente, mas de profunda ternura, que se eleva em voo e resgata memórias. Algo puro, porém concreto. Por essa razão, tomo a liberdade de citar Viriato da Cruz, poeta angolano, onde a natureza e a terra são metáforas importantes sua produção lírica, evocando a infância como um período de esperança e renovação. Uma poética telúrica explorando a relação entre a infância e a terra, com destaque para a vivência e as memórias. Da mesma forma que Rocha, em insight espetacular, escreve:
“dia desses vi / a alma de / um passarinho / no peito / de uma criança / desataram-se em mim / as mais doces lembranças”.
É como se a imagem do pássaro aninhado no peito infantil rompesse a narrativa com uma delicadeza capaz de despertar um sopro de infância permanente. A criança ganha asas e nos revela, em um flash, liberdade e fragilidade — ambas transformadas em memória ao longo do tempo. Uma exuberância lírica que faz do instante algo eterno. Arrisco dizer que Manoel de Barros e Viriato da Cruz ficariam encantados.
E como a poesia ela é inatura e dolorida, forte e dócil, amável e reclamante, Frágeis Artefatos também traz em seu bojo ecos que se circunvizinham com a lâmina de um Nauro Machado. Em “Esqueletos”, por exemplo, a imagem de ossadas dançantes e sombras finas deitadas nuas sobre frutas cruas confere à poesia um tom onírico e sombrio, lembrando o mergulho de Nauro no sentido da vida, do corpo e de sua finitude.
É uma poesia que encara a precariedade humana e a iminência do fim, mas mergulha em imagens intensas, quase pictóricas, para traduzir o desconforto. Vejo, nisso, uma aproximação do metafísico, que é própria de Nauro Machado — difícil, inclusive, de encaixar em reflexões superficiais, mas não, em estiletes interiores que rasgam o existencial da escrita, como o fez Rocha.
Assim, versos como “não há provas da existência daquela/ que destruiu seus amores verdadeiros” me remetem às visões cruas de Nauro (ou até mesmo de Cruz e Souza), numa vertigem de niilismo. Em vários trechos de Frágeis Artefatos, encontro esse ‘reforço estético’ que explora a dor como matéria-prima da lucidez; e não como mero ornamento.
E mais: impossível não aplaudir Rogério, que revela uma fúria linguística invejável. Isso é flagrante em “Menina Vazia”, onde o sujeito poético transita por um terreno psicológico turvo:
“Menina vazia/ menina das festas/ não quer amar/ nem quer afeto/ só gosta do sexo/ do gozo dos gastos/ de um cartão de crédito”.
Aqui, a psicologia existencialista se faz presente. O corpo sem projeto lembra Sartre (“a existência precede a essência”) — vida sem propósito que se converte em abandono. E, em “Dignidade”, a força de quem avisa, como uma resistência ética (evoé, Espinoza!). Possivelmente o poema mais silencioso da obra, embora impacte como um estrondo. Porque mexe com as entranhas mentais, e não apenas são conselhos inapecadores:
“(...) dignidade é necessária
para que a fome não te mate
para que não te roube
o pobre irmão de vícios
aquele a quem
as horas deixaram
das virtudes os resquícios
para que infames não tomem
teus últimos centavos
para que persigas a felicidade
na existência autêntica.”
A “dignidade” em Rocha me recorda Espinosa e seu conceito de conatus — o esforço de cada ser em perseverar na própria essência. Somente ao manter-se íntegro é que o indivíduo não apenas sobrevive, mas floresce em meio às pressões externas. A dignidade torna-se, então, expressão prática dessa perseverança, garantindo que não se perca a liberdade mesmo diante da opressão e da carência.
O poema ainda faz menção aos “pobres irmãos de vícios” e aos “infames”, pintando um retrato de desejos incontroláveis que, segundo Espinosa, podem aprisionar a mente humana. Quando a alma se entrega cegamente a esses impulsos, rompe-se a harmonia entre razão e vida virtuosa.
Destarte, o poema “Dignidade” reflete essa tensão, mostrando que somente a autenticidade nos protege dessas seduções que roubam bens materiais e, pior, a própria dignidade.
Este livro, portanto, não se resume a um amontoado de poemas, mas se transforma numa verdadeira travessia. Uma travessia pelos lampejos da mente humana, carregando o verbo, do caos à estética. E Rogério Rocha demonstra que pode chegar bem longe — desde que continue recolhendo o mel do início para quem sabe, “inventar de novo, o dia”.
*Mhario Lincoln é presidente da Academia Poética Brasileira.