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Sobre “A poética da Embriaguez”, por Socorro Guterres, especial para o Facetubes 

“Em As Flores do Mal, livro que condensa a obra de Baudelaire, publicado em junho de 1857, não procurarei exibir o chamado poeta maldito, nem me deixar contaminar pela melancolia desta obra que foi censurada por ir contra os padrões morais da época, sendo taxada inclusive de obscena.”SG

Mhario Lincoln
Por: Mhario Lincoln Fonte: Socorro Guterres
06/05/2025 às 11h21 Atualizada em 07/05/2025 às 13h28
Sobre “A poética da Embriaguez”, por Socorro Guterres, especial para o Facetubes 
Ginai/Mhl/Google



Socorro Guterres, poeta, escritora, autora de “Nos Domínios da Linguagem (Veredas)" é indicada para a Academia Poética Brasileira. 


Pois vamos falar um pouquinho de um dos fundadores da poesia moderna e também precursor do simbolismo, Charles Baudelaire. Flanemos com ele pelas ruas de Paris, cidade onde nasceu e assumiu como tema em seus versos formais, alexandrinos, ritmados. Observemos em sua poesia os habitantes e a vida pulsante parisiense da metade do século XlX. Desse modo, que nos cheguem imagens poéticas no prosaico do cotidiano francês. 


Nascido em 9 de abril de 1821, aos seis anos ficou órfão de pai. Entretanto, o segundo casamento da mãe foi desconfortável para Baudelaire, que não se sentia à vontade com o estilo militar do padrasto (que foi ministro de Napoleão lll) e a rigorosa disciplina que impôs ao enteado. Isso pode ter sido um dos fatores que levaram o jovem a uma vida boêmia e rebelde, aos versos sombrios, a sucumbir ao absinto, ao ópio e ao haxixe, o que, aos poucos, comprometeria sua saúde: o poeta faleceu aos 46 anos de idade. Mas viveu intensamente, apaixonando-se não só pelas ruas, que se transformavam radicalmente aos cuidados do prefeito Georges-Èugene Haussemann, como também pelas mulheres das ruas de Paris. Baudelaire soube capturar a transformação estética de costumes dessa época e em novas formas de abordagem mostrou na degradação a sujeira e a beleza, exibindo o belo no feio, extraindo a beleza do mal, observando a efemeridade da vida, forjando nessa fusão a noção de modernidade, expondo assim um novo universo temático. 


Amorosamente envolveu-se com a atriz e dançarina Jeanne Duval, mulata haitiana, com quem viveu um romance conturbado de longa duração. Ademais, para vagar na cidade de forma extravagante e nela registrar as cenas dos personagens marginalizados e capturar o amor erotizado, a violência carnal, e tudo o mais que incomodasse a burguesia, valeu-se, paradoxalmente, da herança deixada pelo pai; direito adquirido ao atingir a maioridade. Essa fortuna quase foi dissipada em dois anos de excentricidades, o que levou a mãe de Baudelaire a interditar-lhe o uso, limitando-o a uma pensão mensal. 


O flâneur, andarilho a descobrir a cidade, o danger carregado de lirismo e melancolia, tornou-se amigo de grandes pintores, talvez em busca de preencher o vazio de sua juventude incompreendida a suscitar atritos familiares. Chegou até mesmo a se autorretratar, quem sabe para descobrir seu verdadeiro eu. 


Em As Flores do Mal, livro que condensa a obra de Baudelaire, publicado em junho de 1857, não procurarei exibir o chamado poeta maldito, nem me deixar contaminar pela melancolia desta obra que foi censurada por ir contra os padrões morais da época, sendo taxada inclusive de obscena. Porém, vou expor, por assim dizer, duas flores dessa coletânea que me vêm sempre à memória quando penso no poeta francês: “Os Faróis” e “A uma Passante”. Antes se faz necessário esclarecer que As flores do Mal é dividido em seis partes, ou seções, que abordam a experiência humana: "Spleen e Ideal”, “Quadros Parisienses”, “O Vinho”, As Flores do Mal, “Revolta” e “A Morte". 


O poema “Os Faróis” encontra-se em “Spleen e Ideal”, cujo título expõe a palavra inglesa spleen, mostrando nesse estrangeirismo uma insatisfação, um desânimo, bem como a busca de um sentido maior para a existência ou para a poesia. Com versos que apresentam uma espécie de fuga em meio à melancolia e ao desencanto, oscilando entre o real e o irreal da vida, que os mestres da pintura sabiam muito bem retratar, em “Os Faróis” Baudelaire apresenta, num poema longo de 11 estrofes, Rubens, Leonardo da Vinci, Rembrandt, Michelangelo, Puget, Watteau, Goya e Delacroix (além da alusão à sinfonia de Weber) como grandes faróis no mundo artístico, expondo-os como objeto de estudo e admiração. Procurou assim registrar o lugar da arte na humanidade. O poema que se inicia suavemente vai pouco a pouco tornando-se tempestuoso e vibrante e mostra a arte como um “ópio divinal”.

 

A sinestesia é o recurso simbolista que torna a leitura ainda mais expressiva ao leitor e cuja exploração dos sentidos se vê em versos como: “Frescos cenários clareados pelos lustres”; “As velhas ao espelho e as jovens desnudadas/Que ajustam suas meias e tentam Satanás” ou, ainda exemplificando, na estrofe final “...ardente soluço a rolar de era em era”. “Os Faróis” vem, então, como algo a iluminar a fervilhante urbe. Com a cesura dos versos entre a sexta e a décima-segunda sílaba, é um poema cadenciado, para ser lido em voz alta, para ser recitado. 
Em “Quadros Parisienses”, Baudelaire descreve os contrastes e encantos da vida citadina. E nesses quadros me demoro e relembro integralmente versos dum momento perdido em meio à multidão, que aqui quero registrar: 

 

De Edward Hopper: “ The Solitude”.

A uma Passante 
“A rua em torno era um frenético alarido. 
Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa, 
Uma mulher passou, com sua mão suntuosa 
Erguendo e sacudindo a barra do vestido. 
Pernas de estátua, era-lhe a imagem nobre e fina. 
Qual bizarro basbaque, afoito eu lhe bebia 
No olhar, céu lívido onde aflora a ventania, 
A doçura que envolve e o prazer que assassina. 
Que luz... e anoitecer após! Efêmera beldade 
Cujos olhos me fazem nascer outra vez, 
Não mais hei de te ver senão na eternidade? 
Longe daqui! tarde demais! nunca talvez! 
Pois de ti já me fui, de mim tu já fugiste, 
Tu que eu já teria amado, ó tu que bem o viste!” 


A uma Passante. In: BAUDELAIRE, Charles. As Flores do Mal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. 


Este soneto magistral, traduzido pelo crítico literário Ivan Junqueira, apresenta um momento único, e que não se repetirá, com a mulher passante, cujo farfalhar da barra do vestido chega aos ouvidos do leitor, tal o quadro pintado por Baudelaire nesses versos que ultrapassam a sensação visual e atingem mesmo a audição numa fusão sinestésica, na mistura de sentidos que nos faz quase tocar a beleza inatingível da mulher que passa, da qual o eu lírico expressa o que já foi interpretado como “um amor à última vista” . Os tercetos finais são puro alumbramento: luz e noite; o “tarde demais”; o “nunca talvez”; o momento que passa e leva a mulher, levando também a possibilidade de um amor ao sujeito poético. 


Além dessas duas flores aqui colhidas, há muitas mais à espera de quem se interessar pelos poemas baudelairianos de As Flores do Mal, os quais se tornaram paradigma para a literatura mundial. 

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Marcos Falchero FalleirosHá 5 dias Natal - RNQue aula! Um Baudelaire completo, traduzido em sua potente essencialidade!
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