Análise da Poesia de Ronaldo Costa Fernandes
Por: Mhario Lincoln (*)
As pedras de cantaria
estão surdas e mudas.
Ainda ouço o tambor de crioula
que me embalava nas noites brancas.
Os cantos e becos
que são auditivos e sem saída.
Um dia viverei
numa cidade sem ruas
– labirintos da alma –,
sem praças – a festa coletiva –,
sem casas – úteros de alvenaria.
Estarei então morto
– uma cidade sem homens.
Ronaldo Costa Fernandes.
As cidades também morrem. Às vezes devagar, outras vezes caladas. São Luís, com seus becos de azulejos e ladeiras que sussurram histórias de séculos, parece carregar esse fado. Mas não é uma morte visível, de corpos ou de muros que desabam, e sim de sentidos. As pedras de cantaria, lavradas em silêncio lusitano, ainda sustentam os prédios coloniais, mas já não ouvem nem falam. Tornaram-se surdas e mudas. A cidade pulsa, mas é como um coração isolado, batendo sem ninguém notar.
E no meio dessa cidade que silencia aos poucos, alguém ainda escuta. Escuta o tambor de crioula que embalava noites cheias de lua, de dança, de um tempo em que a cidade não era apenas cenário, mas corpo e voz. Ronaldo Costa Fernandes, o autor do poema que nos conduz a essa reflexão, escreve como quem recolhe cacos de memória antes que se percam na correnteza do progresso mal traduzido. Ele não apenas recorda. Ele denuncia. Porque não basta lembrar. É preciso resistir.
Há uma delicadeza bruta nos versos que falam de cantos e becos auditivos, mas sem saída. São Luís, com sua tradição oral, seu ritmo de batuque e ladainha, parece ter se tornado um labirinto onde a palavra não encontra mais eco. O poeta caminha por essas ruelas como quem procura uma porta para o passado, mas encontra muros de indiferença. A cidade que o embalava, agora o engole. E ele antevê um tempo — sombrio e possível — em que viverá numa cidade sem ruas, sem praças, sem casas. Não por destruição física, mas por esvaziamento de alma. E quando isso acontecer, ele diz, estará morto. Porque morrer é isso: viver onde a cidade já não é mais humana.
Não é à toa que esse poema nos lembra outros gritos poéticos. Carlos Drummond de Andrade confessou que Itabira era apenas uma fotografia na parede — mas como doía. Ferreira Gullar dizia que a cidade não é o lugar, é o corpo. Quando ela morre, um pedaço dele também se vai. Mário de Andrade viu São Paulo como caos criador e confusão existencial. Todos, cada um a seu modo, desenharam a cidade como espelho da alma. E Ronaldo, ao pintar São Luís, pinta o mundo. Como escreveu Tolstói: “Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia.”
E é isso que ele faz. Não canta São Luís por saudosismo, mas por urgência. Porque uma cidade não sobrevive só de sua história. Ela precisa ser contada, tocada, ouvida. Precisa ter gente nas praças, palavras nos becos, gestos nas janelas.
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Fontes reais consultadas:
Obras poéticas e entrevistas de Ronaldo Costa Fernandes [via Academia Brasileira de Letras e blogs literários]
Carlos Drummond de Andrade, "Confissões de Minas", Ed. Record, 1944
Ferreira Gullar, "Poema Sujo", José Olympio, 1976
Citação de Liev Tolstói: “If you want to be universal, start by painting your own village.” [via “Tolstoy: A Russian Life” – Rosamund Bartlett, Houghton Mifflin Harcourt, 2011]
(*) Crônica escrita por Mhario Lincoln para a Plataforma Nacional do Facetubes.