*Mhario LIncoln, editor-sênior da Plataforma Nacional do Facetubes
Há algum tempo conheci Claudia Lara. Fiz com ela uma primeira entrevista que resultou em minha admiração pessoal e intransferível por sua obra e mais do que isso: pela significação dessa obra que vai muito além de suas teias e fios perfeitamente dispostos em linhas de ancestralidade e história viva.
A conheci quando de sua exposição no Museu Guido Viaro, em Curitiba. A partir dali o modo de ver, sentir e retratar a artista ganhou proporções imensas porque pude entender que essa artista têxtil literalmente tece memórias e ancestralidade em bordados carregados de afeto e simbolismo feminino. Principalmente porque ela insere em seu trabalho as tradições orais, além de colocar o Paraná no panorama da arte têxtil brasileira e mundial, dialogando com expoentes internacionais.
É muito bonito ver cada ponto de bordado no trabalho de Claudia Lara que a mim me parece costurar histórias antigas às tramas presentes. Faz com que o expectador dialogue com essa transformação única de tecidos, linhas e retalhos e passe a ouvir narrativas sensíveis sobre memória e ancestralidade.
Graduada em Educação Artística e pós-graduada em História da Arte, ela construiu uma trajetória singular: participou de exposições no Brasil, América Latina, Europa e Estados Unidos, recebendo prêmios importantes – inclusive em salões de arte de São Paulo e até em Paris (diasporagaleria.com.br). Em 2020, seu talento foi reconhecido no 67º Salão Paranaense, que premiou sua obra e a integrou ao acervo do Museu de Arte Contemporânea do Paraná (claudialara.art).
Mas a grandeza de Claudia Lara não reside apenas nos lauréis, e sim na profunda conexão poética que sua arte estabelece com as raízes familiares e culturais. Seus bordados e instalações têxteis são, antes de tudo, atos de memória afetiva. “Hoje eu consigo me ver em um diálogo existencial com minha mãe e com minha avó”, disse-me naquela entrevista, ainda lá no 'Museu Guido Viaro'. E disse mais: “ao costurar acabo entrelaçando gerações”. Com toda a certeza, ao construir esses painéis ela resgata também um valoroso senso de pertencimento.
Na verdade, vale ressaltar que o fazer têxtil, aprendido com as mulheres de sua família, tornou-se, em suas mãos, uma homenagem às antepassadas que usaram linhas e agulhas para o sustento do lar e legaram seus saberes às novas gerações. “Mhario é coisa linda. Vá lá e veja que o bordado, essa prática tradicionalmente comunitária, ganha na obra de Lara, dimensão artística e simbólica carregada de histórias contadas em silêncio por avós e mães”, impeliu-me a imortal APB, Monica Puccinelli (2019), que me apresentou a possibilidade de fazer minha primeira entrevista com essa grandiosa artista. (Veja a íntegra da entrevista em vídeo, abaixo da matéria).
Um exemplo emblemático desse simbolismo apareceu na série “Estandartes para a Lua”, em que Lara concebeu três estandartes bordados inspirados nas fases lunares. Cada fase da lua corresponde a um ciclo da vida da mulher: a Lua Crescente evoca a juventude, cheia de energia e transformações do corpo; a Lua Cheia, ou Plenilúnio, celebra a plenitude da mãe fértil e realizada; já a Lua Minguante, chamada de Lua da Cura, representa a anciã – a avó sábia, que deve ser valorizada por tudo que viveu e pela capacidade de ensinar e curar.
Nessas peças, tecidos translúcidos sobrepostos e delicadamente bordados formam bandeiras etéreas, como estandartes a serem carregados pelo mundo, exibindo o universo de valores que a mulher acumula em sua história de vida e que merece reconhecimentopremiopipa.com. A artista, ao erguer tais bandeiras poéticas, torna visível o invisível: exalta fases da existência feminina muitas vezes relegadas à intimidade, dando-lhes caráter quase sagrado. Em outra obra, “Todo Mundo Quer Ser Amado” (2014), Lara bordou sobre retalhos de voil o retrato rendado de sua própria mãe, inspirando-se em uma personagem do filme A Cor Púrpura. O título – uma afirmação simples e poderosa, “todo mundo quer ser amado” – surge costurado em meio à imagem, unindo texto e têxtil para afirmar um anseio universal. O resultado é um painel delicado e comovente, em que fios negros delineiam o semblante materno sobre fragmentos de tecido quase transparentes, sugerindo a presença palpável e ao mesmo tempo evanescente da memória. Ali, Lara materializa em agulha e linha tanto a força quanto a fragilidade das recordações familiares, num abraço entre arte e afeto.
A opção pela arte têxtil não é fortuita: historicamente, técnicas como bordado, costura e tapeçaria foram associadas ao fazer doméstico feminino, confinadas ao espaço privado. No entanto, Lara veio reforçar uma geração de artistas que reverte esse paradigma, transformando o que antes era considerado “artesanato de mulher” em linguagem contemporânea potente.
Esse foi o primeiro impacto que tomei ao ingressar nas salas do Museu Guido Viaro e me deparar com a fantástica “Ave Mãe”, espalhadas pelas salas do local. (Veja entrevista em vídeo, abaixo). Ao final, a arte de Claudia Lara não é só dela. A artista acaba implementando uma ressignificação do têxtil para dialogar com as próprias histórias do Brasil.
Tal fato me fez voltar aos anos 1920 e pedir para a paulista Regina Gomide Graz sentar nesta mesma mesa. Afinal, em meu entender, foi ela a pioneira das artes têxteis no país, com as chamadas “tapeçarias Art Déco”, influenciadas por pesquisas em arte indígena brasileira. Décadas depois, a força visionária de Arthur Bispo do Rosário traria os bordados para o centro da atenção: internado num hospital psiquiátrico, Bispo – ele próprio descendente de escravizados – bordou incansavelmente estandartes e mantos com nomes, figuras e palavras, numa obsessiva missão de “replicar o mundo” e preservar memórias pessoais e coletivas dentro dos muros da instituição.
Essa potência poética do bordado como arquivo vivo também se manifesta na obra de artistas contemporâneas como Rosana Paulino, cujo trabalho conhecido como “Costura da Memória” literalmente sutura dores históricas: Paulino recupera a memória ancestral afro-brasileira e dá visibilidade às subjetividades femininas negras por meio de instalações com tecidos, fotografias e costuras. Desse modo, o fio condutor do têxtil no Brasil entrelaça intimamente arte e cura, política e afeto, indo dos fios coloridos das tapeceiras modernistas às agulhas insurgentes das artistas contemporâneas, como o faz, de forma extraordinária, a paranaense Claudia Lara.
Diante de todas essas informações anteriores, que tal conhecer a nova Exposição de Claudia Lara?
É o que eu senti lá no fundo de minha alma ao mergulhar nesse terreno lariano, onde estética e afeto caminham juntos, fazendo com que sua arte, de feição contemporânea, carregue uma alma antiga – a alma das fazedoras de pano, das contadoras de histórias em volta da mesa de costura. Ou seja, a cada nova exposição, seja em Curitiba, São Paulo ou no exterior, Lara revela capítulos de um relato maior, um painel feito de lembranças pessoais e coletivas, costurado com linhas de ancestralidade.
Portanto, enfim, meu emocionante cumprimento em Iurubá: Tẹ́síwájú, ìwọ ni ọmọ-ọba obìnrin ọ̀nà. (“Em frente, princesa da Arte”).
VÍDEO-BÔNUS
A entrevista feita em 2019
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*Mhario Lincoln é presidente da Academia Poética Brasileira.
Referências:
· Diasporá Galeria – Claudia Lara: Bio e currículo da artistadiasporagaleria.com.brdiasporagaleria.com.br.
· Claudia Lara (site oficial) – Premiação no 67º Salão Paranaenseclaudialara.art.
· Carazzai, Daniélle – Casa Sul Ed. 104 (2021): Entrevista “O fio da meada” – trajetória e diálogo de Lara com mãe e avóyumpu.com.
· Museu de Arte Contemporânea do PR – Programa educativo “Estandartes para a Lua”: abordagem do têxtil como homenagem às mulheres da famíliapremiopipa.compremiopipa.com.
· Aborda (2024) – Artigo “Arte têxtil e hierarquia de gênero”: valorização contemporânea do bordado e do têxtilaborda.com.braborda.com.br.
· Acervo SP – Nota biográfica sobre Regina Gomide Graz, pioneira da tapeçaria moderna no Brasilacervo.sp.gov.br.
· Dasartes (05/05/2023) – “Obras de Bispo do Rosário em Nova York”: descrição dos mantos e estandartes bordados de Bispodasartes.com.brdasartes.com.br.
· Menezes, Hélio – Contemporary& América Latina (27/02/2019): “The Sewing of Memory” – exposição de Rosana Paulino na Pinacoteca de SPamlatina.contemporaryand.com.
· Medium (Feb 2025) – Artigo “Faith Ringgold: The Woman Who Brought Slave Quilts To Life”: origem das story quilts como crônica da experiência afro-americanaamenteemaravilhosa.com.bramenteemaravilhosa.com.br.