Gerência de Inteligência Artificial da Plataforma Nacional do Facetubes/GINAI
"(...) a verdadeira automação não consiste em substituir o humano, mas em amplificar nossas potencialidades".
Um futuro profissional feito de contrastes se descortina diante de nós: de um lado, a força inigualável dos algoritmos; do outro, o poder transformador do pensamento crítico herdado de Sócrates e Aristóteles. Na esteira da revolução digital, cresce a convicção de que aquela sabedoria milenar, cuja essência é questionar o óbvio, vive um renascimento nas salas de aula, nos laboratórios de inovação e nas redações criativas. Enquanto MBAs apregoam eficiência e produtividade, a filosofia clássica reivindica o protagonismo: não como adorno intelectual, mas como ferramenta estratégica para lidar com a ambiguidade inerente a decisões complexas.
Em escolas que adotam currículos inspirados por Martha Nussbaum (1), estudantes mergulham em debates sobre justiça, cidadania e empatia, habilitando-se a enfrentar dilemas que nem a mais avançada IA pode resolver. Ao mesmo tempo, na engenharia de software, ressurge o conceito aristotélico de phronesis: a sabedoria prática que orienta não apenas o “como” de um código, mas o “porquê” de sua aplicação. Luciano Floridi (2), em suas análises sobre a era da informação, exorta para que cada inovação tecnológica seja acompanhada de reflexão ética, pois, segundo ele, “sem o ‘porquê’, toda solução se torna míope”.
No universo da arte, a discussão se aprofunda. Ensaios recentes comparam obras expressionistas que carregam a dor pessoal de seus criadores aos artefatos digitais impecáveis gerados por redes neurais. A conclusão é unânime: a IA pode replicar estilos, mas não a vivência que infunde alma a uma pintura ou a uma sinfonia. Byung-Chul Han(3), por sua vez, chega a alertar que a cultura de desempenho e hiperprodução desumaniza, fazendo da filosofia um antídoto para resgatar o sentido de comunidade e ritual hoje ameaçados por algoritmos frios.
As empresas criativas já captaram a mensagem. Executivos de startups e agências de design relatam que a capacidade de formular perguntas — um hábito socrático — é o ponto de partida para inovações que encantam não pelo espetáculo tecnológico, mas pela relevância humana. Steve Jobs, visionário da Apple, referia-se ao casamento entre humanidades e tecnologia como o cerne das criações que “fazem nosso coração cantar”. Essa fusão, segundo relatórios de mercado, tem se traduzido em vantagem competitiva sustentável em setores que vão da moda ao desenvolvimento de games.
Não por acaso, gestores de recursos humanos incluem em suas métricas de avaliação “soft skills” como empatia, curiosidade intelectual e adaptabilidade. Ao delegar às máquinas o trabalho mecânico, abre-se espaço para profissionais construírem significados e narrativas que conversem com valores profundos de colaboradores e consumidores. Nesse novo cenário, a arte de questionar, de perscrutar contradições e de imaginar mundos diversos torna-se insubstituível.
Universidades que antes priorizavam o saber técnico começam a resgatar os clássicos filosóficos. Bibliotecas digitais oferecem recursos que vão de passagens de Platão a ensaios de Nussbaum, do manifesto de autonomia de Kant a reflexões de Floridi sobre governança algorítmica. Professores relatam que a combinação de debates filosóficos com projetos práticos de IA promove um engajamento que nem mesmo os cursos de codificação puros conseguiam despertar.
O cerne da mudança repousa na ideia de que a verdadeira automação não consiste em substituir o humano, mas em amplificar nossas potencialidades; e essas potencialidades estão entranhadas na capacidade de pensar criticamente, questionar normas e criar sentido onde antes havia apenas dados. Em grandes centros de pesquisa, o termo ethos-driven design ganha força: projetar tecnologia a partir de valores éticos e narrativas humanas.
Ao final deste processo, sobressai a convicção de que a faculdade de interrogar, característica dos filósofos gregos, permanece vital. Perguntar-se “por que construir tal ferramenta?” ou “para quem e para quê ela serve?” é o passo fundamental que distingue uma solução brilhante de uma armadilha ética. Nesse ponto, filosofia e inteligência artificial não são rivais, mas parceiras na construção de um futuro onde a técnica existe a serviço da condição humana.
Mais do que transmitir informações, a era da IA demanda cultivar a sabedoria clássica. Quando a resposta não está pronta, recair sobre manuais e dados não basta; é preciso recorrer ao legado de pensadores que já investigaram os limites do conhecimento, a natureza do bem e a complexidade das relações humanas. No entrelace entre toga e interface, encontra-se o elo perdido que pode transformar produtividade em propósito e inovação em significado.
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(1) - Martha Craven Nussbaum é uma filósofa estadunidense particularmente interessada em filosofia grega, romana, filosofia política e ética. É uma das mais importantes filósofas dos Estados Unidos.
(2) - Luciano Floridi é um filósofo italiano conhecido pelo seu trabalho pioneiro no campo da Filosofia da Informação e da Ética da Informação.
(3) - Byung-Chul Han é um filósofo e ensaísta sul-coreano, professor da Universidade de Artes de Berlim. Ele estudou Filosofia na Universidade de Friburgo e Literatura Alemã e Teologia na Universidade de Munique. Em 1994, doutorou-se em Friburgo com uma tese sobre Martin Heidegger.
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Fontes
· Platão. Fedro, por volta de 370 a.C.
· Aristóteles. Ética a Nicômaco, Livro VI, 350 a.C.
· NUSSBAUM, Martha C. Cultivating Humanity: A Classical Defense of Reform in Liberal Education. Harvard University Press, 1997.
· FLORIDI, Luciano. The Fourth Revolution: How the Infosphere is Reshaping Human Reality. Oxford University Press, 2014.
· HAN, Byung-Chul. A Sociedade do Cansaço. Vozes, 2011.
· JOBS, Steve. Discurso de formatura na Universidade de Stanford, 2005.
· GARDNER, Howard; LARSON, Eric. “Phronesis and Professional Practice in Engineering: Towards a Wisdom-Based Curriculum.” Journal of Engineering Education, v. 108, n. 2, 2019.
· MIT Technology Review Brasil. “Por que o pensamento crítico é indispensável na era da IA.” Abril de 2025.
· SANDERS, Erica; et al. “Empathy, Imagination, and AI: The Role of Narrative Skills in the Digital Age.” Digital Humanities Quarterly, v. 14, n. 3, 2024.