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A volta triunfal de João Ewerton: “Água e folhas do Amazonas Episódio XVI”

João Ewerton é membro da Academia Poética Brasileira, escritor, roteirista, produtor cultural e ex-secretário de Cultura de Valença-RIO

Mhario Lincoln
Por: Mhario Lincoln Fonte: João Ewerton
30/06/2025 às 18h59 Atualizada em 02/07/2025 às 18h50
A volta triunfal de João Ewerton: “Água e folhas do Amazonas Episódio XVI”
arte em alto relevo: Ginai/Mhario Lincoln.

 

Avenida das Nações Unidas, segui para a rua da Marujada, onde dezenas de tendas abrigam os voluntários eufóricos das galeras do Caprichoso e do Garantido. Aqui me deparo com dois curiosos elementos do Boi-Bumbá, que dão o toque fundamental no formato da apresentação desse espetáculo extraordinário, que se tornou referência mundial da cultura brasileira por seu apelo inominável de criação estética, agregada a uma tecnologia concomitante — a mais avançada tecnologia de espetáculo — para dar suporte às mais profundas referências ancestrais.

É bom que se destaque que os bois de Parintins não têm apenas um sistema criativo organizado, como as escolas de samba. Além disso, eles têm conselhos técnicos responsáveis por estudar os temas e aprofundar suas buscas com a responsabilidade de manter imaculadas as matrizes originárias, sem transformá-las ou deformá-las para agregar qualquer tipo de impacto ao espetáculo — o que é feito por outro viés criativo, que é a materialização das figuras míticas das águas, das florestas e das nações originárias. Essas figuras são transformadas em monumentais alegorias, que se tornaram a marca registrada dos bois de Parintins, os quais hoje exportam essa tecnologia para escolas de samba do Rio de Janeiro e de São Paulo.

Esse preâmbulo é só para poder falar sobre a Marujada, que dá nome à rua onde estão as tendas que abrigam a Galera — aqueles jovens que dão a alma para favorecer o seu boi, seja quando se apresentam como o item 19: o conjunto de torcedores dispostos nas arquibancadas laterais gratuitas, com as cores do seu boi.
A Galera é a massa humana que forma coreografias uníssonas e organizadas no contexto do espetáculo, ensaiadas e apresentadas com toda a perfeição de conjunto e dinâmica que só eles conseguem executar por tantas horas, com tamanho ritmo e energia e sincronicidade – é uma célula do coração do boi pulsando com felicidade e paixão.

A Galera é a torcida do futebol transformada em elemento cênico requintado pelas mãos dos diretores de arte e coreógrafos, que a integram ao contexto do espetáculo, com um direcionamento artístico extremamente elaborado e melhor ainda executado. Eles são a alma do brasileiro, pulsando pelo espírito da competição que nos impregna desde que somos essa mistura complexa de etnias tão adversas e singulares.

É impressionante que esses jovens ficam semanas a fio debaixo dessas tendas, como aqueles fãs fanáticos que acampam em frente ao portão de estádios para ver o show dos seus artistas prediletos — não importando o sol escaldante, as chuvas, o sono, a noite em claro — por semanas. Pois nada paga o prazer de integrar um espetáculo transcendental como é uma apresentação no Bumbódromo. Só quem viu sabe do que estou falando.

Junto a essa singularidade está o item que dá nome a essa rua onde estão as barracas da Galera: a Marujada — item 03 — representada pelo conjunto de brincantes que fazem o acompanhamento percussivo das toadas, sendo base para o espetáculo. Sustentam o ritmo para as grandes orquestras, com instrumental distinto das sinfônicas e filarmônicas, mas muito próximos das orquestras do bumba-meu-boi sotaque de orquestra do Maranhão, porém com um número de instrumentos bem maior e mais variedade. Isso lhes dá a possibilidade de executar as músicas do boi com toda a sua pompa e, se for necessário, executam músicas clássicas com a mesma maestria — porém com sotaque brasileiro, bem imponente como é o Amazonas.

A denominação “Marujada” tem suas origens na Marujada de São Benedito, mais conhecida simplesmente como Marujada, manifestação muito conhecida de Bragança, no Pará, que tem dupla origem: uma matriz luso-marítima e uma adaptação criada pela população escravizada em terras amazônicas.
Originalmente, “marujada” remetia às festas de marinheiros em Portugal, ligadas às comemorações das navegações e descobrimentos dos séculos XVI e XVII. Eram celebrações em terra firme, com danças e cantos imitando o ritmo dos navios e homenageando santos protetores dos mares.

Os navegadores portugueses tinham muitos temores em relação aos oceanos, pouco conhecidos, o que acabou despertando algumas crendices e superstições. Além dos santos oficialmente reconhecidos, os marinheiros portugueses carregavam amuletos e cultivavam crenças sincréticas, incluindo o medo do Adamastor — uma figura mitológica do Cabo das Tormentas. Outros invocavam a Estrela do Mar, um título simbólico que davam a Maria, mãe de Jesus. Além disso, era costume convocar os padres para dar as bênçãos para eles e para a embarcação antes das partidas.

Esses medos dos mistérios dos mares acabaram por desenvolver o culto a diversos santos que os navegantes portugueses procuraram se apadrinhar para enfrentar os mares. Entre os principais santos invocados estão: Nossa Senhora dos Navegantes, ou da Boa Viagem, a principal padroeira dos marinheiros portugueses, que era invocada antes das grandes travessias oceânicas, especialmente durante as expedições marítimas dos séculos XV e XVI.

É importante ressaltar que a devoção a Nossa Senhora dos Navegantes também foi bastante difundida no Brasil, especialmente no litoral e em comunidades ribeirinhas — Belém, Porto Alegre, Salvador e Recife — sendo ainda hoje celebrada em Portugal e no Brasil, com procissões marítimas, especialmente em vilas e cidades costeiras.

Outro santo do panteão dos mares portugueses é São Pedro, o padroeiro dos pescadores e das comunidades costeiras. Por ser um dos apóstolos pescadores e a “pedra fundamental” da Igreja, tornou-se referência espiritual de quem vive do mar. Em Portugal, é celebrado com grandes festas populares no final de junho.
Em São Luís do Maranhão, o dia 29 de junho é dedicado a ele, sendo nesse dia a grande virada dos grupos de bumba-meu-boi, que amanhecem na porta da sua capela, na Madre Deus, para acompanharem a procissão marítima — um dos principais eventos das festas juninas de São Luís.

São Telmo, ou Santo Elói dos Mares, foi outro santo muito cultuado pelos marinheiros portugueses, pois tornou-se patrono dos marinheiros ibéricos por sobreviver a uma tempestade após orações fervorosas.

São Francisco de Paola era outro santo invocado. Sua fama se deu por uma história que contavam a seu respeito, onde, segundo os relatos, ele teria atravessado o estreito de Messina sobre o próprio manto, num milagre marítimo — tornando-se, por isso, um dos santos protetores dos que atravessavam o mar, invocado para pedir milagres em momentos extremos.

São Nicolau de Mira, mais conhecido como “São Nicolau dos marinheiros” ou “dos náufragos”, foi patrono dos navegantes, sobretudo na Idade Média, quando sua fama se espalhou por toda a Europa como o grande intercessor contra naufrágios.
Por fim, Santo Amaro, considerado o protetor dos viajantes e navegadores, teve culto muito popular entre os camponeses e marinheiros portugueses, sendo celebrado com festas religiosas e procissões marítimas em algumas regiões de Portugal, e no Recôncavo Baiano, em Santo Amaro da Purificação.

Dessas manifestações dos marinheiros portugueses foi feita a adaptação da Marujada em Bragança, no nordeste do Pará, no final do século XVIII. A tradição ganhou contornos próprios a partir de 1798, quando os senhores de escravos autorizaram a criação da Irmandade de São Benedito e a construção de uma capela dedicada ao santo.

Para agradecer essa permissão, os negros que trabalhavam nas lavouras e no serviço doméstico organizaram uma festa em honra a São Benedito, incorporando elementos africanos, europeus e indígenas numa dança coletiva que passou a chamar-se Marujada. Ocorre entre 18 e 26 de dezembro, com encerramento em 1º de janeiro — o Dia da Paz — incluindo novenas, ladainhas, missas e a grande procissão de 26 de dezembro, dia de São Benedito.

A dança da Marujada mistura elementos de carimbó com sapateados e roda coletiva, sem cantoria estruturada, criando um espetáculo visual de cores e coreografia única.

Assim, a Marujada do Pará nasce da fusão entre a celebração marítima lusitana e a criatividade ritualística da população escravizada, tornando-se uma das mais vibrantes manifestações culturais e religiosas da Amazônia — com um pouco do “corridinho” e outras danças rurais europeias cristianizadas, que se misturaram a ritmos indígenas e africanos, dando o tom da Marujada bragantina: singela e, ao mesmo tempo, vigorosa e cheia de personalidade.

Tão forte que denomina a batucada do Caprichoso de forma tão solene que nos causa arrepio ao vê-los entrando na arena com o garbo da Marujada de Bragança e a força dos guerreiros originários, embrenhados na selva da fantasia em nossas memórias.

No clima eufórico da sexta-feira, a primeira noite do festival e a minha primeira noite na arena junto com a equipe do caprichoso, sigo embevecido nesses pensamentos, enquanto contorno o Bumbódromo, deslumbrado com tamanha imponência e tanta referência cultural ali refletida. Vou me esgueirando e desviando de milhares de pessoas com seus “trajes caprichosos” e, aos poucos, passo pela catraca de acesso ao backstage do Caprichoso, onde, ainda arrepiado pela emoção de estar ali, logo no portão, me deparo com um velho amigo de Salvador — Vovô do Ylê — tão importante que está descrito como “o elegante sutil”, na música “Reconvexo” de Caetano Veloso:

“Quem não amou a elegância sutil de Vovô

Quem não é Recôncavo e nem pode ser Reconvexo”

Aliás, música de onde peguei o título desta saga, pois, só viajando pelo rio Amazonas para se entender que os grandes mistérios desta terra indecifrável se escondem debaixo das águas e por detrás das folhas. Por isso, essa citação nesse verso de Caetano:

“Eu sou a sereia que dança – A destemida Iara – Água e folha da Amazônia.”

E por esses versos, estou seguindo esta saga que parece inesgotável.

 

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JaimeHá 2 dias BSB/DFJoão Ewerton e presidente ML, dois naipes valiosíssimos.
João EwertonHá 6 dias São LuisProf. Carlos Braga (Braguinha do Pará), obrigado pelo adendo. Abraço
João EwertonHá 6 dias São LuisJulio Aarão, músico e compositor, lamentável como uma pessoa que se diz músico, que deveria ter uma mente arejada, tenha um pensamento tão esdruxulo e bitolado, repetindo discurso dos pobres de direita. Digo não pobre só financeiramente, mas pobre de conhecimento e informação. Comunismo não existe mais moço, se atualize e deixe de incriminar quem consegue se destacar. Não tenho mais paciência com esse teu tipo de gente, moço.
João EwertonHá 6 dias São LuisSued Pereira, esse período eu morava no Rio. Cheguei em Valença em 1986. PArabens pelo seu progresso! Abraço.
Prof. Carlos Braga (Braguinha do Pará)Há 2 semanas Belém PASó para ilustrar. A Marujada é uma celebração tradicional que ocorre anualmente no município de Bragança, no nordeste do Pará, como parte da Festividade de São Benedito, o “santo negro” padroeiro dos escravizados. A festa mistura elementos religiosos, culturais e históricos, e foi reconhecida em 2024 como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil pelo IPHAN.
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