
Socorro Guterres, APB-RGN
Harold Bloom, em O Cânone Ocidental , relata que a tardia chegada do romantismo francês provocou uma forte influência de Shakespeare na literatura francesa, "que foi particularmente vital em Stendhal e Victor Hugo", e é sobre esse último, num título não tão destacado entre suas obras, que gostaria de comentar.
Victor Hugo, nascido em 1802 e falecido em 1885, é conhecido na França como o "homem do século, por ter participado de grandes fatos dessa era, tendo escrito poemas, peças teatrais e grandiosos romances. No prólogo de Os Trabalhadores do Mar, clássico que convido o leitor a visitar, o escritor francês já nos expõe que esse tomo na verdade faz parte de uma trilogia incidental de sua autoria, que aborda três formas de lutas por grandes necessidades: a luta contra a religião, em O Corcunda de Notre-Dame ou Notre-Dame de Paris (1831), em que o homem precisa quebrar paradigmas da Igreja; a luta contra a sociedade, em Os Miseráveis (1862), obra-prima num apelo por justiça social, e a luta contra o incontrolável nos elementos da natureza, em Os Trabalhadores do Mar (1866). Victor Hugo denominou essas necessidades de ananke, (do grego fatalidade). Diz ainda o escritor em seu prólogo: "A estas três fatalidades que envolvem o homem, junta-se a fatalidade interior, o ananke supremo, o coração humano".
O título, Trabalhadores do Mar, despertou meu fascínio em relação as aventuras marítimas ou náuticas e me chamou à leitura. Essa temática que foi destaque sobretudo na primeira metade do século XlX, nos legou, dentre outros, o monumental Moby Dick, publicado em 1851, pelo norte- americano Herman Melville, na narrativa das aventuras dos homens que vivenciam os perigos em alto mar. Na obra de Victor Hugo os títulos surpreendem também na composição dos capítulos (chamados livros) e de suas várias subdivisões, como exemplifica a denominação do Livro Primeiro: "Elementos de uma má reputação".
Mas, voltando à introdução desta reflexão, a capacidade de Shakespeare em explorar as emoções e a complexidade da natureza humana ressoou com eficácia em Victor Hugo, provendo seus personagens de profundidade psicológica e explorando assuntos universais como o amor ou o destino, os quais destacam-se em Gilliatt, herói da épica história de Os Trabalhadores do Mar, a qual teve sua primeira tradução para o português sob os cuidados de outro mestre da palavra: Machado de Assis.
Vamos a um breve resumo do enredo. O livro é dedicado à Ilha de Guernesey, no Canal da Mancha, lugar onde Victor Hugo ficou exilado por 15 anos devido ao descontentamento político em relação a Napoleão III, que de presidente eleito assume o trono da França como Imperador. A vivência na ilha dará ao escritor todos os pormenores à elaboração do romance, no detalhamento do cenário insular, da comunidade local, das superstições e do cotidiano dos habitantes. O protagonismo cabe a Gilliatt, descrito como um super marinheiro, que chegara criança à ilha, em companhia da mãe.
Esse herói se apaixona pela bela e jovem Déruchette, sobrinha (considerada filha) de Mess Lethierry, homem notável, dono da embarcação a vapor Durande (praticamente personagem na trama) que traz a modernidade, mas também é considerada coisa monstruosa, "que silvava e cuspia, que roncava como uma besta e fumegava como um vulcão, uma espécie de hidra...". Contudo, por traição de vilões, que conhecemos no decorrer da ação, Mess (que significaria um título como "senhor") Lethierry perde a preciosa Durande para os perigosos recifes Douvres que assombram o mar da região.
Note-se que os antagonistas não são apenas humanos, é o próprio mar, em sua fúria; são os perigos e as imprevisibilidades dessas águas, bem como as tempestades e correntes marítimas e ainda a solidão desse ambiente. Advindo, então, a terrível batalha do herói com um polvo gigante, isso devido à missão impossível que ele se propôs a executar para salvar a Durande e em troca receber Déruchette em casamento. Missão suicida em feito cíclope que Victor Hugo nos faz vivenciar num relato extraordinário, permeado de ironias e digressões, dentre as quais uma das mais bonitas, a meu ver, é o relato sobre o vento, como magnífico elemento da natureza.
A paixão dramática de Gilliatt é vinculada literariamente a um Romantismo diferenciado na escritura de Victor Hugo, numa complexidade emocional que conduz a um final catártico, cujo estranhamento o dispõe como um dos mais esplendorosos da literatura mundial, traçado com perspicácia, sabedoria e discernimento. Gilliatt domina a natureza e Victor Hugo domina a palavra literária, em cuja mensagem verbal encontra-se a arte, a nos permitir um conhecimento do mundo e dos homens.
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