TEXTOS ESCOLHIDOS
OS AVESSOS AVULSOS DE SALGADO MARANHÃO
Convidado Especial: José Neres
(Professor, escritor, membro da AML e da Sobrames-MA)
Os poetas são pessoas normais que, em alguns momentos, conseguem inseminar nas palavras uma beleza que vai além dos significados visíveis e audíveis. No momento da criação poética, parece que esses seres se veem iluminados por uma incompreensível aura que dá a cada uma dessas pessoas o poder de modificar sentidos e de tirar todas as estruturas verbais de seus eixos de acomodação. A poesia é capaz de transformar cores e dores em flores e dissabores, dependendo da vontade, do talento e do incessante trabalho com as palavras.
Contudo...
Já faz um bom tempo que os amantes da literatura em versos vêm reclamando de uma espécie de “crise da/na poesia”, não pela falta de bons escritores ou por não haver qualidade na construção imagética, sonora ou artística dos poemas, mas pela considerável ausência de leitores, consumidores e comentadores dessa nobre arte literária.
É perceptível que muitas pessoas (muitas!!!) não querem mais saber de se debruçar sobre um livro repleto de poemas e inundado de poesia. A chamada sociedade, líquida sobre a qual tanto escreveu o sociólogo polonês Zygmunt Baumam, parece querer afogar, com seu bafejo tacocrônico, a força, a leveza e a densidade da poesia.
Porém...
Mesmo mergulhados em riscos e incertezas constantes deste nosso mundo pós-moderno, ainda existem pessoas que utilizam seu precioso tempo para ler, divulgar e produzir poemas. E um desses seres iluminados pelos acordes dos líricos arpejos poéticos é José Salgado Santos, mais conhecido no mundo literário como Salgado Maranhão, um homem que, há décadas, vem edificando um monumento em forma de livros de grande aceitação por parte da crítica especializada e que consegue alcançar uma seleta fatia dos leitores de poesia não apenas no Brasil, mas também em outras partes do mundo, pois seus livros são traduzidos para diversas línguas.
Dono de uma forte e bem articulada dicção poética, Salgado Maranhão já mereceu elogios de nomes como Ferreira Gullar, Olga Savary, Heloisa Buarque de Hollanda, Antônio Cícero, Jorge Wanderley, Domício Proença Filho e Rafael Campos Quevedo, para ficar apenas no âmbito da mais arguta e exigente crítica literária.
Cordial nas palavras e no trato com as pessoas, o poeta, em seu livro Avessos Avulsos (Editora 7 Letras, 2016, 80 páginas) tenta convencer o leitor de que “nunca fui senão um domador / de fábulas. O que arrisca seus / ritos no penhasco. / Nunca serei menos que o grito e um rastro de asas” (pág. 30), porém nas 53 cenas verbais que compõem o livro, o poeta demonstra exatamente o contrário. Não se trata de um mero domador de fábulas, mas sim de um escultor de palavras capaz de incrustar diamantes de poesia em formas e fatos que muitas vezes têm origem na dor e nos inúmeros desenganos pelos quais o homem passa em seu dia a dia.
Mesmo ciente de que “não há remédios / para as flechas maduras / que atravessam a noite” (pág. 16), o poeta sabe que sua voz, que é metaforicamente descrita como “um tigre / que atravessa / o pântano” (pág. 24), pode fazer a diferença no meio de uma multidão de seres silenciados pelos (des)casos que se multiplicam em cascata em todos os cantos do mundo, pois sempre deve haver “quem dome a tempestade e (...) quem desacate os mares” (pág. 53). E essa é uma das muitas missões de um poeta, um ser que cavalga “a dor / de ser pétala entre espinhos” (pág. 66).
Ao entrar em contato com a produção poética de Salgado Maranhão, o leitor sempre se deparará com um apurado senso estético de quem atiça “a labareda da linguagem” (pág. 41), para ora dali extrair “as ervas aromáticas de teu sexo” (pág. 43), ou para lembrar que “teu pão vem dessa fome / que arbitra o salário das aves” (pág. 25), ou seja, nas construções poemáticas desse artista das palavras, há espaço tanto para o erótico quanto para o social, pois tudo recende à essência humana.
O poeta sabe que “viver é ser somente o vento / e o areal” (p. 23), que o amor tanto pode ser “bárbaro feito um vampiro” (pág. 33) ou “a ciência de arder as veias e a concha / onde o mar perde o músculos” (pág. 31), pois tudo que vem de forma avulsa (ou não) pode ser visto também pelo avesso do avesso.
Nesse livro, assim como em tantos outros, Salgado Maranhão acaba, mesmo sem querer, demonstrando que o poeta é uma pessoa normal, com o diferencial de saber agarrar-se à força das palavras para delas extrair o máximo possível de cada som, de cada sílaba, de cada imagem.
Se a poesia (e a literatura como um todo) está em crise, é assunto para outra conversa, por enquanto fica a beleza de imaginar que ainda existe quem se interesse pelas palavras escritas e a certeza de saber que “poesia é fazer cantar a pedra” (pág. 25) em uma “terra / em que os sonhos brotam com sangue (pág. 30). E é isso o que nos faz mais humanos a cada passar de dia ou de página.
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