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Raimundo Fontenele: dois capítulos que mostram o verdadeiro Erasmos Dias.

Raimundo Fontenele é convidado da Plataforma Nacional do Facetubes (www.facetubes.com.br)

Mhario Lincoln
Por: Mhario Lincoln Fonte: Raimundo Fontenele
02/01/2025 às 15h29
Raimundo Fontenele: dois capítulos que mostram o verdadeiro Erasmos Dias.
Capa do livro de Raimundo Fontenele

 

O princípio e o fim, último capítulo do livro A REPÚBLICA DOS APICUNS do escritor Raimundo Fontenele, é uma homenagem sobre a figura emblemática do grande maranhense Erasmo Dias:

 

JOSÉ CHAGAS: A MORTE DE ERASMO, JORNAL

DO DIA, SÃO LUÍS, 5 DE MAIO DE 1969

 

“A morte do jornalista Erasmo Dias, anteontem, constituiu o mais psicodélico dos acontecimentos, nos últimos dias, em São Luís. A notícia espalhou-se pela cidade e, entre dúvidas e certezas, muitos de seus amigos viveram momentos de angústia, alguns procurando afogar essa angústia no “Atenas Bar”, o que era ao mesmo tempo um consolo e uma homenagem ao recém-desaparecido.

 

 Murilo Ferreira vira quando o Erasmo, alta madrugada, depois de um colapso em plena rua, fora levado para o Centro Médico. E como testemunha de vista afirmava que o Erasmo já chegara ali morto, afirmação essa que no bar contrariava a opinião de outros que teimavam em dizer que o jornalista só falecera momentos depois de chegar ao Centro Médico.

            O poeta Fernando Braga contava detalhadamente como o corpo do já pranteado jornalista fora levado para a residência nos Apicuns e falava da dificuldade imensa que tiveram para encontrar dentro da casa o terno preto com que vestissem o morto, de modo que ele se apresentasse dignamente, em sua postura cadavérica.

            Enquanto isso, o Murilo, entre prantos e cervejas, ia explicando aos que entravam no bar outro grande problema surgido com a morte do Erasmo. Era que seu corpo estava sendo disputado pela Assembleia Legislativa, pela Academia Maranhensede Letras e pela Prefeitura Municipal. A Assembleia argumentava que o jornalista havia sido deputado, era funcionário daquela casa e, portanto, o Legislativo tinha direito sobre o seu cadáver. A Academia de Letras, considerando que Erasmo havia sido um dos mais inteligentes escritores e uma figura das mais evidentes em nossos meios literários, queria que o corpo fosse levado para lá, tentando talvez academizá-lo postumamente, o que muitos achavam ser uma traição ao jornalista. Já o Cafeteira alegava que Erasmo fora prefeito em certa época e por isso desejava que o corpo fosse levado para o recinto da Câmara Municipal.

            Houve quem também dissesse ali no bar que as últimas palavras de Erasmo fora: “Água! Água!” Mas ninguém acreditou. Não era possível que na hora respeitável da morte o Erasmo fosse faltar com sua coerência tão bem demonstrada em vida.

            E o poeta Fernando Braga lembrava outro detalhe: “O Erasmo sempre me dizia que no dia de sua morte só queria de mim isto: “que eu colocasse quinze rosas em seu túmulo e bebesse uma cachaça no Bar da Saudade”. O poeta já havia comprado as rosas e mais algumas margaridas. Queria um enterro “hippie”.

            Amigos e mais amigos chegavam e ficavam consternados. Se alguns duvidavam, Murilo mandava ouvir o rádio, através do qual o locutor Fernando Sousa dizia: “Estamos sabendo que o jornalista Erasmo Dias acaba de falecer. Notícia não confirmada, mas enquanto isso é com grande pesar que comunicamos o doloroso fato”: Era o que o Presidente Michel chamou depois de “morte condicionada”. Muitas pessoas tomaram automóveis e foram até a casa do jornalista morto, certas de que o rádio estava dizendo a verdade.

            E eis que de repente o Erasmo, de paletó e gravata, entra no bar, exclamando: “Essa, não! Nunca morrer assim, num dia assim, de grogue assim...” Sentou-se e pediu uma cachaça, sob a admiração de muitos que o viam como um ressuscitado. E duas coisas dolorosas foram então lembradas: a frustração do jornalista Paulo Moraes, que já estava com o discurso pronto para a beira do túmulo, e a raiva do jornalista Amaral Raposo, que entrou no bar e disse, danado da vida: “Peguei um automóvel, gastei dois mil cruzeiros para ir à casa do Erasmo e esse idiota nem morreu nem nada. Nunca mais vou cair no conto da morte dele!”

            A essa altura, Erasmo sorria feliz, pedia outra dose e dizia ao dono do bar: “Defunto não paga grogue”, sem saber que o dono do bar tinha vivido momentos aflitivos, chorando com um vale preso na mão e a que o Murilo Ferreira chamara de “verdadeiro vale de lágrimas”.

 

LATINÓRIO

Estando Newton Bello governador, dá-se a mudança simbólica da sede do governo para São Bento, sua cidade natal.

Após cumpridos os costumeiros atos de inaugurações, inclusive a de uma usina  de eletricidade para iluminação da cidade, e emissão de ordens de serviço, segue-se o banquete de iguarias da culinária local.

Entretanto, discursam o prefeito e o deputado Orlando Leite. Quase ao término das palavras deste, entra José Erasmo, que se demorara na comprovação da fama da “mais bem gelada cerveja da cidade”, servida em um boteco no Bairro D’Outra-banda. A insólita figura do deputado metida em terno branco de lapelas já profusamente salpicadas de manchas de bebidas e portando sob o braço um grande jabuti que adquirira na vendinha, causa sussurros, provoca olhares de reprovação, arqueamento de sobrancelhas, enrugar de faces e esgar de lábios.

Indiferente às evidências de contragosto, o culto e irônico intelectual deposita o jabuti sobre a alva toalha de franjas em labirinto de fina bordadura, puxa uma cadeira e senta-se entre os convivas.

Orlando conclui, entre ovações, a bela peça de sua erudita e elegante oratória. De imediato, o cerimonialista da festa anuncia: “Com a permissão do Excelentíssimo Doutor Governador, a palavra está franqueada aos presentes.”

Então, o cônego Ribamar Carvalho, à ocasião Secretário da Educação,  reconhecido entre os melhores oradores maranhenses , levantando-se, diz, em voz grave e tom solene: — Eu peço a palavra! Ao que, com um aceno de cabeça, recebe o assentimento do ilustre governador.

Ribamar Carvalho, então, corrige a posição dos óculos, cruza os dedos das mãos sobre o ventre e, em alta voz, após o rito solene das saudações às autoridades e convidados, inicia a sua oração, com agrado e ansiosas expectativas aguardadas pelos presentes:

— A sofrer as vascas  da morte, o majestoso e inexedível Göete impreca, com sofreguidão: FIAT LUX! 

            Incontinente, José Erasmo Esteves y Dias levanta-se de modo abrupto, recolhe o jabuti entre suas mãos, e grita, entre o estrépito da cadeira, na qual se assentara, a tombar ruidosamente:

            — Ah, espera aí, Ribamar, latim de caixa de fósforos, não! Esperava cousa melhor.

            E, inclinando-se em reverência ao Governador Newton Bello, arremata:

              Com licença, Senhor Governador. Voltarei para  ouvir histórias em D’Outra-banda!

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JaimeHá 1 dia Brasília/DFParabéns por trazer a baila, esse jornalista de grande valor.
ANTONIO AÍLTON SANTOS SILVAHá 2 semanas Paço do LumiarRetrato de uma época e de um ser fenomenal em texto vívido e saborosíssimo. Parabéns, RF!
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