Editoria de Patrimônio Histórico e Povos Originários
O Arquivo Nacional lançou uma importante exposição virtual que promete devolver ao olhar do público parte da memória indígena ferida pelo incêndio que, em 2018, destruiu grande parte do acervo do Museu Nacional no Rio de Janeiro. Intitulada “Trajetória de uma coleção: a arte da cerâmica Tapajó”, a mostra resgata registros visuais e documentais de uma das mais expressivas coleções arqueológicas da Amazônia, representando os povos originários da bacia do Tapajós, com foco na cultura material dos Tapajó — civilização ancestral ligada à história dos atuais povos indígenas, como os Munduruku.
A exposição, hospedada em ambiente digital, apresenta 78 registros que incluem fotografias inéditas, mapas, relatórios e documentos textuais sobre um acervo que hoje existe apenas em imagem e papel. As peças de cerâmica, com relevos finos, simetria escultórica e alto grau de sofisticação artística, foram originalmente adquiridas pela extinta Fundação Brasil Central (FBC), em 1945, e posteriormente transferidas ao Museu Nacional em 1955. A maior parte dessas obras desapareceu com o incêndio do dia 2 de setembro de 2018, episódio que abalou a comunidade científica e cultural brasileira e deixou o país em luto por sua memória científica e indígena.
Os vestígios que sobrevivem estão agora reunidos na exposição graças ao fundo documental da própria FBC, atualmente sob custódia da Superintendência Regional do Arquivo Nacional em Brasília. Um dos destaques do acervo virtual são os registros feitos por Robert e Rose Brown, casal de norte-americanos que adquiriu parte significativa dessas peças e as documentou com rigor técnico, contribuindo de forma inestimável para que essa herança não fosse completamente apagada.
O lançamento da mostra se insere simbolicamente na comemoração dos 81 anos do Abril Indígena, marco do calendário nacional que celebra as lutas, as resistências e a profunda contribuição dos povos indígenas à formação do Brasil. Nesse contexto, a exposição torna-se mais do que uma simples homenagem: ela é um gesto de reparação cultural e um ato de afirmação da presença ancestral que ainda pulsa nas margens dos rios da Amazônia.
Mais do que recuperar a imagem de um acervo perdido, a exposição abre espaço para uma reflexão sobre a importância do patrimônio arqueológico não apenas como herança museológica, mas como expressão viva da história de comunidades que ainda hoje habitam a bacia do Tapajós. Povos como os Munduruku, os ribeirinhos e os beiradeiros continuam a cultivar relações espirituais e materiais com os vestígios deixados por seus ancestrais, mantendo vivas práticas culturais que resistem ao tempo e à violência histórica.
Se o fogo apagou parte da memória física, o gesto do Arquivo Nacional reacende a importância de se proteger, divulgar e valorizar a história dos povos originários por meio dos instrumentos digitais, que agora se tornam aliados na construção de um Brasil mais consciente de suas raízes. Em tempos de reconstrução da identidade e de respeito à diversidade, essa exposição é uma centelha que ressurge das cinzas — tal como as peças de cerâmica que, embora caladas, ainda têm muito a dizer.