Texto da Editoria de Comportamento do Facetubes, com Mhario Lincoln
“(...) a pessoa que atrasa sempre age de forma controladora e não demonstra ter consideração pelos horários e responsabilidades dos outros. (...)”. Roberto “Bob” Hirsch.
Ontem, dois compromissos sérios (envolviam saúde) foram cancelados algumas horas antes. Meu retorno ao médico para reavaliações, também. Na segunda, outra pessoa com quem tinha que conversar sobre assuntos de novas implementações no Facetubes (www.facetubes.com.br), se atrasou 2 horas. (Ainda bem que tinha uma livraria do lado do prédio). Pois bem! Diante desses absurdos (na opinião de muitas pessoas de bem) decidi pedir ajuda para a Gerência de Inteligência, do Facetubes (GINai), a fim de que ela fizesse um levantamento sobre (despontualização), ou seja, no popular “a irresponsável falta cumprimento de horário” das pessoas e o desrespeito a outrem.
As respostas e as pesquisas foram tão interessantes que decidi escrever esse texto baseado no que a (Ginai) entregou. A pesquisa foi incrível. Diferente.
Sim, é mesmo sobre essa “espirituosa” falta de pontualidade. Imagina: tem gente que atrasa para mostrar seu ego superior. Então comecemos pelo clássico atraso da noiva. Aliás, aproveito para indicar uma das obras mais bem humoradas do professor Edomir Martins de Oliveira, vice-presidente executivo nacional da Academia Poética Brasileira – “Finalmente a Noiva Chegou “ – (para ler a crítica: xurl.ooo/5xf1n).
Na verdade, o atraso das noivas, por incrível que pareça, tem sim, um fundamento simbólico e cultural. A origem mais conhecida vem da Europa vitoriana: a noiva que atrasava sua entrada estaria reforçando a ideia de que não estava “desesperada” para se casar, demonstrando recato, virtude e até mistério. No Brasil, a prática foi reforçada nas décadas de 1950 e 60, especialmente nas cerimônias religiosas tradicionais, onde a entrada triunfal era esperada com ansiedade — e um leve atraso ajudava a criar tensão emocional e expectativa social.
Hoje, o “atraso da noiva” virou quase um clichê. Algumas chegam a atrasar 40 minutos ou mais, sob o pretexto de maquiagem, trânsito, fotos ou ansiedade. Mas especialistas em etiqueta, como a consultora brasileira Fábia Oliveira, alertam que esse atraso não deve ultrapassar 15 minutos, sob risco de desrespeitar os convidados, fornecedores e o próprio noivo.
Ai pensei: de onde vem essa “cultura” do atraso em outras áreas do relacionamento das pessoas? Aí entrou a GINAI me fornecendo informações maravilhosas, como essa: “Há indícios históricos, culturais e antropológicos que ajudam a explicar a origem da falta de cumprimento de horário no Brasil — e até mesmo a tradição do atraso das noivas, que virou piada pronta, mas tem raízes mais profundas. Porém, cita a opinião do grande Sergio Buarque de Holanda, assim: “O sociólogo Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil (1936), trata desse comportamento falando do “homem cordial” brasileiro, que prioriza o vínculo afetivo e a improvisação em detrimento das regras formais e cronogramas fixos. Ou seja, “para o brasileiro médio, a “ordem horária” imposta pelo relógio europeu industrializado é uma camisa de força difícil de vestir, e que a lógica dos encontros era muito mais fluida do que marcada pelo tic-tac. O tempo, para nós, era “vivido”, não “controlado”. (...)”. E aí?
Mutatis Mutandi, o atraso a compromissos, no caso brasileiro, é estudado por muitos pensadores que mostram o tal do relacionamento “flexível”, onde o marcar do tempo, foi herdado de uma combinação entre o legado ibérico, a cultura africana e os costumes indígenas.
Diferente da pontualidade anglo-saxônica — pautada pela exatidão protestante e pelo "tempo como dinheiro" —, as culturas que formaram a base do Brasil valorizavam mais as relações interpessoais e o presente do que o compromisso com horários futuros. (Aí a feitura ideológica de Holanda, novamente).
Desta forma, será que um atraso de dez minutos num compromisso costuma ser visto como normal? Meia hora, aceitável e só além disso começa a soar como descaso? Essa “cultura do atraso”, no meu caso, foi mais sério do que nunca, porque, além do atraso ser seguido por um cancelamento sem explicações. Refiro-me a minha consulta médica. Mas isso acontece “normalmente” em entrevistas de emprego, reuniões profissionais – e é tão disseminada que eventos raramente começam na hora marcada. (O ator Antonio Fagundes, por exemplo, manda fechar a portar do teatro em que se apresenta, minutos após ele entrar no palco).
E Fagundes juá disse em entrevistas que o brasileiro precisa aprender a cumprir compromissos, “com pontualidade britânica”. “Parece que o Brasil não tem relógio”, disse certa vez o humorista Tom Cavalcante ao notar o pequeno teatro, onde começava a carreira, quase vazio.
Vale, então, analisar outros mundos com relação à despontualidade nacional. A rede BBC, em uma análise de comportamento, notou que, “graças a uma atitude sem pressa de que ‘a vida é uma praia’, brasileiros aprenderam a não esperar nem valorizar a pontualidade”, descreveu a escritora britânica Lucy Bryson.
Segundo Bryson – que morou nove anos no Brasil –, até mesmo dentro do país há gradações: “em um país famoso por sua relação relaxada com horários, os moradores do Rio são conhecidos como os menos pontuais”. A percepção estrangeira sobre nossos atrasos não é nova. Em 1933, o explorador Peter Fleming escreveu que “o atraso no Brasil é um clima. Você vive nele, não pode sair dele. Não há nada que se possa fazer”. Fleming sugeria, com ironia, que os brasileiros até poderiam ter orgulho dessa ‘característica natural’ inescapável.
Por outro lado, fiquei impressionado com a entrega da GINAI com relação ao levantamento nacional do Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil). Sim! Ela me mostrou que apenas 24% dos entrevistados se classificam como pessoas organizadas que sempre chegam no horário combinado, enquanto 76% admitem se atrasar com frequência ou pelo menos ocasionalmente. Ou seja, três em cada quatro brasileiros reconhecem furar compromissos de vez em quando. Mas por que isso acontece? Especialistas apontam fatores que vão da educação familiar e cultura à psicologia – e até ao funcionamento do cérebro.
A partir daí no GINAI (devidamente programada) entra em um espaço muito interessante: o atraso x psicologia x psiquiatria. Ela foi buscar o psicólogo Roberto “Bob” Hirsch: “impontualidade muitas vezes começa na infância, espelhando o exemplo dos pais. Se os pais têm esse comportamento, há uma tendência de que a criança venha a repeti-lo” na vida adulta”.
Nessa enxurrada, achei em minha biblioteca, na mais alta das prateleiras, a psicóloga Renata Borja. Dela, tenho a obra que comprei em e-book e organizei em um pequeno livro impresso – “Combatendo o Perfeccionismo: Abraçando a Vulnerabilidade. Seu Primeiro Passo para o Sucesso, Saúde e Bem-Estar” – simplesmente incrível.
É dela: “(...) a incapacidade de cumprir horários e priorizar tarefas frequentemente está relacionada a transtornos como TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade), depressão e ansiedade. Pessoas com essas condições apresentam déficits nas funções executivas – ou seja, têm mais propensão a distrações, esquecimentos e perda do controle do tempo”. Possivelmente mais sério do que a gente pensa.
No entanto, há quem defenda que a explicação seja menos clínica e mais comportamental. “É falta de respeito”, opina Hirsch sobre o hábito crônico de se atrasar. Segundo ele, a pessoa que atrasa sempre “age de forma controladora e não demonstra ter consideração pelos horários e responsabilidades dos outros”.
Quando essa conduta parte de alguém em posição de chefia, diz o psicólogo, fica claro que o impontual “quer todo mundo à sua disposição” – transmitindo a mensagem de que considera seu tempo mais valioso que o dos demais.
Essa leitura coincide com a percepção de muitos dos chamados pontuais: quem nunca ficou esperando e sentiu que o outro “não respeita o meu tempo”? A escritora Diana DeLonzor, autora do livro “Never Be Late Again” - (“Nunca mais se atrase”, afirma que os pontuais geralmente encaram atrasos como um desrespeito, quase um insulto pessoa. Para ela, os atrasados crônicos não agem por mal, mas vivem numa relação complicada com o relógio – e costumam ser consistentes em seu hábito: “chegam depois tanto em festas de aniversário quanto em velórios.” (Se você conhece alguém assim, mande este texto. Talvez lhe abra os olhos.
Mas, vamos em frente com relação aos aspectos culturais, que também pesam (e eu dei acima dois exemplos contundentes de artistas que são terminantemente contra os despontuais). Estudos em psicologia social classificam o Brasil como uma sociedade “policrônica”, em que o tempo é percebido de forma mais fluida e menos rigorosa. Diferentes atividades se sobrepõem e as relações pessoais muitas vezes se sobrevalorizam em detrimento da pontualidade estrita.
O negócio é, por este lado, muito sério: “A forma como pensamos o tempo é arbitrária; no fundo, estamos falando de valores culturais”, explica o psicólogo social Robert Levine, que estudou atitudes temporais em 31 países. Em contraste, culturas “monocrônicas” – como a britânica, alemã ou japonesa – encaram horários de maneira inflexível, veem atrasos mesmo pequenos como ofensa e cobram pontualidade como sinal de profissionalismo e respeito.
Essa flexibilidade ajuda a entender por que tantos brasileiros saem de casa tarde, ou apenas na hora marcada do compromisso, confiando na tolerância geral. Quando acabam se atrasando, não faltam justificativas: trânsito lento, chuva, o despertador que falhou, a babá que não veio… A lista de desculpas é imensa – e muitas vezes as explicações são verdadeiras. Aliás, já está quase pronto meu novo e-book: “As 100 desculpas que mais usei para meus atrasos constantes”. Além do bom humor, usei alguns detalhes psicológicos e psiquiátricos.
Mas, sejamos francos. Há imprevistos que acontecem. Isso é fato. Contudo, problema é quando o atraso vira hábito. Nesse caso, a consequência imediata é mal-estar e stress: quem está atrasado vive correndo contra o relógio, e quem está esperando fica frustrado ou ofendido. Além disso, há riscos concretos: no trânsito, a pressa de quem sai atrasado pode ser “muito mais perigosa”, digo isso no e-book e mostro os riscos.
Acontece, é que mudar essa cultura não é fácil, mas não é impossível. Li em algum lugar – num desses livros de autoajuda – “Pontualidade se aprende”, garantem os especialistas – e deve ser vista como um ato de respeito coletivo. Porém, quem está disposto a mudar? Você? Comenta aí embaixo.
---------------------
Fontes:
· Campos, Stela. Valor Econômico – “Chegar cedo a um compromisso é tão ruim quanto atrasar” (05/04/2019) valor.globo.com.
· Bryson, Lucy. BBC Travel – “Why Brazilians are always late” (30/07/2018), apud UOL Brasilianismobrasilianismo.blogosfera.uol.com.brbrasilianismo.blogosfera.uol.com.br.
· SPC Brasil – Pesquisa Nacional de Educação Financeira (2016) spcbrasil.org.brspcbrasil.org.br.
· Caldeira, Thaís. O Tempo – “Psicologia do atraso: por que algumas pessoas não conseguem ser pontuais?” (13/10/2022) otempo.com.brotempo.com.br.
· Callegari, Jeanne. Vida Simples – “Uma reflexão sobre a pontualidade e a consciência temporal” (06/2017), repost em DesaceleraSP desacelerasp.com.brdesacelerasp.com.brdesacelerasp.com.brdesacelerasp.com.br.
· Oliveira, Andréa C. F. Psicologia em Estudo (PUC-PR) – “Indicadores psicossociais relacionados a acidentes de trânsito envolvendo motoristas de ônibus” (2004) scielo.br.
· Ministério dos Transportes (Gov.br) – Artigo “A sua pontualidade diz muito sobre você…” (21/01/2016) gov.brgov.br.