NA: Eu tinha pensado em publicar esse conto como uma homenagem ao Dia Internacional da Mulher, mas desconfiei que eu seria acusado de desrespeito para com as mulheres justamente no dia que só se ouvia e escrevia louvações e belíssimas homenagens.
DO LIVRO DE CONTOS “PEDAÇOS DE ALBERTO CARONTE”:
RAIMUNDO FONTENELE é poeta e escritor, com livros publicados em várias partes do País.
Pequeno dicionário de mulheres
Mulher-uva
Isto foi um marco da infância. Poderia dizer a.J. e d.J. Antes de Janete e depois de Janete. Um grande divisor de águas. Um Moisés angelical com seu cajado rachando um rio em duas metades. Nada de rio Jordão. Rio Pucumã, um riozinho quase seco durante os grandes estios, mas caudaloso e invadindo as margens verdejantes nas grandes cheias de ótimos invernos.
Janete era a filha mais nova de uma família numerosa e abastada que viera de Tianguá e fixara residência numa cidade chamada São Domingos, porque só o tempo é memorável e faz milagres. E sem precisar de nenhuma máquina do tempo, dessas encontráveis em lixo travestido de ficção científica, o tempo vem até aqui e coloca Janete, dez anos, diante de si, ó Caronte, você com seus doze anos de idade. Janete, uma morena clara, os olhos castanhos e alegres e um sorriso que por certo fazia cócegas em seus lábios. Linda, linda, linda.
– Alberto, vamos menino, te veste, está na hora da missa – a voz da mãe era a mão da rotina carregando Caronte todos os domingos para a missa das nove horas. E ele ia. A infância toda seria assim e talvez toda sua vida, não fosse Janete.
Moravam num casarão, Caronte, seu pai e sua mãe. E mais uma família. Um primo seu, casado e com filhos, a esposa dele era costureira, ótima profissional. E foi por isso que Janete entrou por aquela porta e na vida dele, Caronte.
Acabaram os dois, juntos, correndo no imenso quintal, cheio de laranjeiras, mangueiras, cajueiros, e ela, além de correr, pulou dentro do coração e do sangue do menino Caronte, com seus desejos sólidos e líquidos. Sólido, seu membro duro. Líquido, suas lágrimas verdadeiras.
Janete chegou pela primeira vez para provar um vestido justamente num domingo quase às nove horas. Ela entrou e, com tal visão diante dos seus olhos, Caronte não teve dúvidas. Inventou uma doença, uma dor de cabeça ou de barriga qualquer, na qual sua mãe acreditou piamente tão perfeita foi sua representação da tal enfermidade, e lá se foi ela com seu missal negro e seu véu branco.
Ele ficou em casa tirando uma onda de doente, e curtindo momentos apaixonados em companhia daquela jovenzinha que viera alegrar esse e outros domingos, mais que os cânticos religiosos das missas dominicais.
Mulher-jaca
Era sua adolescência. Na pequenina Pucumã, mais estreita em mentalidade que em coordenadas geográficas, Caronte estava se sentindo só e oprimido. Só, porque nesta idade os jovens não reconhecem os próprios pais, tanto vão se afastando um do outro o que foi e o que virá.
Oprimido porque, por conta do seu mal comportamento e bebedeiras, não havia mais uma garota na cidade disposta a, com ele, flertar, namorar, ficar. Os pais jamais aprovariam e uma ou outra que tentava desobedecer a proibição paterna era sempre vítima de algum castigo familiar.
A vida seguia seu rumo, com seus acontecimentos rotineiros e suas, para Caronte, benditas exceções. Como aquela grande festa organizada pela juventude pucumãnense onde seria coroada a rainha do coco babaçu, acontecimento anual que punha toda a juventude em polvorosa. A alegria pairava no ar, pois só se viam jovens em grupo, rindo e falando muito, visitando o comércio local, vendendo convites, arrecadando donativos e prêmios que seriam distribuídos às primeiras colocadas no concurso de beleza local.
Sabedor de que das cidades vizinhas chegariam rapazes e moças atraídos por aquela festa que já era uma tradição esperada por todos durante onze meses, Caronte viu naquilo uma oportunidade para se dar bem. Arranjar alguma namoradinha, bonita de preferência, pois as feias que o perdoassem, mas como ele havia lido no poeta Vinicius de Moraes “beleza é fundamental”.
Chegou o sábado da festa que se completava no domingo, quando a turma de jovens, num caminhão fretado, se dirigia à vizinha cidade de Colinas para um refrescante banho no rio Itapecuru.
O diabo é que nosso jovem Caronte, alegre e ansioso, angustiado e aflito, esperançoso e sôfrego, começou a encher a cara de cerveja, cachaça, conhaque Frei Damião ainda cedo da tarde. À noite, na tão gloriosa e esperada festa, nem sabe como chegou, nem o que se passou, somente em alguns momentos o cara tinha sopros de lucidez e visualizava um acontecimento ou outro. Ouvia quando a orquestra atacava uma música ou outra.
Lembra de sentar à mesa com alguns amigos que insistiram para que ele fizesse uma boquinha. Frango assado, carne do sol, farofa, de tudo mordiscou um pouquinho, bebeu um refrigerante ali mesmo na boca da garrafa e em dado momento os vapores do álcool pareceram dissipar-se quase por completo. Justamente na hora que os músicos entraram com os acordes da música Poema do Adeus, sucesso do cantor Miltinho, e uma das suas preferidas, quando o álcool lhe fazia cócegas no cérebro e o amor ou a paixão beliscavam seu coração qual um pássaro faminto.
Caronte pediu licença aos amigos, levantou-se e atravessou o salão de festas num passo de zigue-zague e parou diante daquela garota que lhe pareceu um anjo de formosura caído dos céus, mas enviada do município de Tuntum para que não passasse em brancas nuvens e fosse motivo de gozação dos colegas no dia seguinte. A maioria estava dançando, rostinho colado, ou então parados ao lado de uma garota, mãos entrelaçadas, a paquera correndo solta.
Chegara a sua vez e ele saiu castigando o bolero e na certa os pés da garota, que ninguém sabe quantas vezes foram pisados, mas o flerte engatou e Caronte passou o resto da festa, ou de mãos dadas com a menina, ou dançando, abraçando, beijando, acariciando, tudo meio de leve que a moral ali não permitia certos avanços.
Domingo de manhã, mais morto que vivo de ressaca, Caronte saiu de casa se preparando para se juntar à turma e irem curtir um gostoso banho no Rio Itapecuru, na vizinha cidade de Colinas. Ia em companhia de um amigo e, ao se aproximarem da turma, perguntou ao amigo qual era a garota com quem tinha ficado na festa, pois nem de sua fisionomia se lembrava direita.
O amigo então lhe apontou uma morena baixinha, de pernas tortas, arqueadas mais que pernas de cowboys pelo costume da montaria. Caronte quis voltar diante daquela garota que para ele, tão exigente em termos de beleza feminina, aquela garota se assemelhava mais com uma aparição do inferno. E o pior é que viu a garota destacar-se do grupo e caminhar na direção dele e do seu amigo.
Rápido, falou para o amigo: “Vou simular um desmaio, jogar-me no chão e tu avisa pra ela que é um ataque de epilepsia e que vais ter que ir me deixar em casa”. E assim fez, jogou-se ao chão, todo trêmulo, baba escorrendo do canto da boca, revirando os olhos entre gemidos e saracoteios.
E assim terminou aquela promessa de passeio dominical em companhia dos amigos. Preferiu ficar ali mesmo no seu Pucumã, bebendo cerveja, a ter que pagar um mico diante dos colegas em companhia daquela garota que mais parecia uma jaca.
(GRAN FINALE NA PRÓXIMA SEMANA COM A “MULHER-ESPONJA”)