RECEITA DE MULHER
*Eloy Melonio
Maria, Zilda, Dulce, Arcângela, Fernanda, Marielle, Elza...
Que me perdoe o Vinicius, pois aqui vai uma receita de dar água na boca de qualquer poeta. Porque a mulher não é apenas um rosto bonito, quadril largo e pernas torneadas — apectos físicos sutilmente captados pelo olhar masculino.
A mulher é mais que “nádegas” e “saboneteiras” que o poetinha exigia. É óbvio que ele falava em nome de um olhar típico do boêmio de sua época. E está perdoado por isso, posto que “Receita de Mulher” (1959) é uma estupenda peça poética. Mas longe de representar, em sua plenitude, as mulheres.
É inegável que a mulher ocupa espaço privilegiado na poesia, na música e nas cenas de qualquer love story. E, aproveitando esse potencial, o marketing dos negócios associou seu sex appeal ao imaginário coletivo dos homens (e também das mulheres). Se uma famosinha curte uma determinada marca cerveja, muitas mulheres vão querer seguir sua preferência.
Uma influência arrebatadora, não é mesmo?
Mas o que existe além dessa representação sensual? Para os especialistas, uma variedade de qualidades e potencialidades. É apaixonada pelo que faz, não tem medo de assumir riscos, quer evoluir na carreira. E está, hoje, fortemente representada no mercado de trabalho: a cientista, a produtora cultural, a deputada, a policial, a empresária, a motorista d van escolar.
Além de tudo isso, pode-se destacar a quase esquecida “companheira” — expressão bíblica para a primeira mulher, que, muitas vezes, mesmo trabalhando fora, é dona-de-casa exemplar.
Faz-se aqui necessário falar da mulher em sua condição de cidadã, engajada em várias frentes. Que luta pelos seus direitos e que, corajosamente, representa outras mulheres. Essa, em geral, não está nem aí para o estereótipo de Vinicius de Moraes, embora muitas se encaixem perfeitamente nessa idealização dos poetas românticos.
Hoje, quando se destaca na sociedade, a mulher é vista como dedicada representante da luta pelo bem-estar das pessoas. Infelizmente, o mundo das redes sociais ainda não foi capaz de ouvir e valorizar a sua voz. E isso, como diria Roberto Carlos, por causa de um “detalhe tão pequeno”: quem ainda faz as leis são esses sujeitos que se dizem seus amigos ou companheiros. Felizmente, elas sabem que um longo caminho ainda as separa do “oásis” da igualdade. E já conseguem vislumbrar, no bom sentido, a mesma “sombra e água fresca” que os homens desfrutam há muito tempo.
Nas últimas décadas, o palanque político mudou muito. Nesse novo cenário, as mulheres ganharam espaço no debate em torno de questões essencialmente femininas como assédio sexual, violência doméstica, igualdade de direitos. Não sei dizer o número de atrizes nesse palco, mas sei que sua representatividade se torna cada vez mais real e mais consistente.
Nosso século se orgulha de ter empoderado duas jovens que chamaram a atenção do mundo com seu grito de indignação: a paquistanesa Malala Yousafzai, a mais jovem vencedora do Nobel da Paz, em 2014 e a “pirralha” sueca Greta Thunberg, que, aos 16 anos, foi escolhida “Person of the Year/2019” pela revista Time. Aliás, essa honraria — não é demais lembrar — era, até pouco tempo, reverência midiática exclusiva dos homens.
A mulher hoje pisa e repisa os modelos impostos pelo patriarcalismo dominante. Já destronou o famigerado "sexo frágil" e o cambaleante "Por trás de um grande homem...". E consolida sua posição em busca de mais direitos, mais reconhecimento, mais oportunidades. Mas ainda tem muitas “pedrinhas” para tirar do meio do caminho.
No universo das redes sociais, a panela ferve repleta de argumentos e posições. E é por lá que, hoje, caminha a humanidade. Em muitas situações, as trincheiras são necessárias. Mas, como já disse, bem melhor que a guerra é o entendimento. Nesse contexto, a mulher parece ter o perfil ideal para entrar nessa lida democrática.
E quanto às “mulheres” da primeira linha desta crônica?
Apesar da escolha aleatória, são pessoas reconhecidas por sua representatividade. Se adicionarmos um título ou sobrenome, facilmente serão reconhecidas: Maria “da Penha”, Zilda “Arns”, “Irmã” Dulce, (...), Fernanda “Montenegro”, Marielle “Franco”, Elza “Soares”.
Essa lista não significa que essas são as mais representativas. O que importa aqui é a sua atitude diante dos desafios da vida, da sociedade e do mundo.
Uma delas você certamente não conseguiu identificar. E por que está nessa lista? Porque, mesmo anônima, foi, para a sua família, exemplo de força, caráter, dignidade.
Essa mulher — física e socialmente — está longe do perfil idealizado por Vinicius de Moraes. Era uma guerreira, no estrito uso do termo. Acordava cedo para preparar os filhos para a escola. Fazia de tudo em casa. E, assim, criou cinco de seus nove filhos. Suas “nádegas” não eram bonitas, pois se sentava no chão para quebrar coco babaçu para ajudar na renda da família. Em vez de “saboneteiras”, o destaque eram os ombros, fortes de carregar tanto peso. E as mãos calejadas de lavar roupa com sabão em barra. Uma incontestável representante das milhões de mulheres que habitam os mais precários becos deste país.
Seus predicados: dona de casa exemplar. Analfabeta, modesta, e — acima de tudo — virtuosa.
Arcângela "Melonio", mulher qualificada a entrar em qualquer lista de pessoas dignas. A eterna companheira de vida e túmulo de Seu Manoel Rodrigues, meu pai.
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Eloy Melonio é membro da APB (Academia Poética Brasileira).
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