Ilustrações: Mhario LIncolm comAI.
"Estes escritos pertencem a um livro em gestação com o título SOCO NO MURO e subtítulo Ensaios de Filosofia e Arte. Os textos ora publicados aqui no Facetubes, graças à generosidade do espaço que me é cedido pelo ilustre amigo Mhario Lincoln, são partes do Capítulo Um - Pequenas Fábulas Fontenelianas", poeta e escritor Raimundo Fontenele.
AS SECRETAS RAZÕES DA LOUCURA
Havia um Reino Encantado, num lugar de todos desconhecido, cujo Rei era um louco.
Seus editos, determinações e leis eram frutos de pequenos e esparsos momentos em que lhe sobrevinha a sanidade – diziam.
Nenhuma lei era injusta. Nenhuma determinação era contrária a qualquer lei da natureza ou dos homens. E os editos agradavam a súditos e vassalos, religiosos e militares, artesãos e comerciantes, nobres e plebeus, ricos e pobres.
Era um Reino feliz onde todos eram felizes.
O que ninguém sabia, e jamais poderia sequer imaginar, era que leis, editos, decretos e determinações, embora fossem promulgados naqueles instantes em que a razão dominava, eram todos concebidos, pensados, criados exatamente durante os momentos de total insanidade e loucura.
NUVENS ESCURAS TOLDARAM O CÉU
Numa radiante manhã de sol, o viajante e peregrino seguia por uma estrada florida e perfumada.
Podia ouvir, mesmo que fosse ao longe, o cantar mavioso de algum pássaro, o sussurrar das águas de um riacho, pelo qual passou com o coração cheio de doçura e encantamento, e os silvos de folhas nas árvores trazidos pelo vento.
Caminhava contrito e alegre: seu cajado era sua única arma, com a qual enfrentaria alguma fera que aparecesse repentinamente a sua frente, e levava também seu farnel composto de algumas frutas, mel e fatias de pão integral.
Enquanto andava, seu passado, em forma de lembranças, emergiu de dentro de si trazendo-lhe preocupação e desassossego. A estrada ficava cada vez mais estreita, parecia-lhe que o céu escurecia e que logo uma tempestade o alcançaria. E até murmurou em voz baixa para si mesmo:
– Nuvens escuras toldam o meu céu...
Mas não havia nuvens, muito menos escuras. Ao olhar novamente para o céu, e para fora de si, a manhã continuava radiante e alegre e o sol brilhava em todo o seu esplendor.
E soube: aquelas nuvens escuras eram apenas os seus pensamentos.
OLHANDO ALÉM DAS APARÊNCIAS
Ao sentir que o peso dos anos lhe curvava a espinha e que o seu tempo de provações na terra se esgotava, o homem subiu a montanha.
Procurava no alto daquele monte uma espécie de sábio e vidente que ali habitava. Era, como se diz, um perito, um especialista em desvendar o ser humano, mesmo que este procurasse guardar, da forma mais secreta, certo segredos.
Procuravam-no todo tipo de pessoas: ricos, pobres, gordos, magricelas, angustiados, confiantes, humildes, orgulhosos, desesperados e esperançosos. Mas todos com um único objetivo: ouvirem o veredito a respeito de si mesmos e qual destino teriam, após serem carregados pelos braços da morte, para o lado invisível do mundo e das coisas.
Seu método era simples e seguro. Não fazia perguntas. Apenas olhava fixamente, por alguns segundos, o visitante para ver se este baixava ou desviava o olhar do seu, ou se permanecia também olhando-o firmemente.
O dom especial do vidente é que aquele que o consultava via-se a si mesmo no olhar do sábio, e passava a se reconhecer como realmente era por dentro, sem máscaras ou fingimento.
Pois, sentenciava o eremita do alto da montanha: “nem todos se reconhecem ao olharem-se no seu espelho interior”.
O HOMEM QUE QUERIA SER BOM
Quando Malencastro atingiu setenta anos abandonou tudo que tivera até então, esposa, filhos, emprego, teres e haveres, e com o único objetivo de tornar-se um homem ou bom, ou sábio, ou seja reles peregrino, caiu na estrada.
Vagava de cidade em cidade e de vilarejo em vilarejo numa espécie de peregrinação quase religiosa, efetuando pequenos trabalhos para custear o seu minguado pão de cada dia, suficiente para manter-se vivo e alimentar seu sonho e sua procura.
As palavras de um certo profeta ecoavam no seu cérebro e em todo o seu ser, quando recolhia-se em um abrigo para uma noite de sono: "O meu reino não é deste mundo".
Quanto mais meditava nessas e em outras palavras do profeta, mais sentia que a sua natureza humana se transformava, como se sua alma ganhasse uma nova pele.
Pelo meio dia de um dia abafado e úmido deitou-se à sombra de uma frondosa jabuticabeira para descansar e mergulhou num sono profundo.
Ao acordar, no meio da tarde, suado e aflito com pedaços de um sonho agourento martelando-lhe a memória, de repente observou algo escrito no chão, um pouco abaixo dos seus pés.
"Algum transeunte rabiscou com um graveto qualquer", pensou e leu o que estava escrito:
– Ninguém é bom quando abandona o seu próprio eu.