
*Mhario Lincooln c/Editoria de Pesquisa e Extensão do Facetubes
“O país que chora em rito público, insinuando crítica à teatralidade do luto e à desigualdade que ele encobre". (LIMA BARRETO).
Quando minha mãe, Flor de Lys, foi enterrada no Jardim da Paz, em São Luís do Maranhão, acompanhei cada gesto daquela cerimônia com uma dor profunda no peito. Naquele instante, compreendi que já não poderia senti-la por perto como fiz durante tantos anos. Mas a vida segue — e ela sempre repetia que “a vida deve continuar”. Amanhã, dia 03 de novembro, seria o aniversário dela. Minha mãe faria 95 anos. Portanto, temos que continuar.
E para continuar com ela sempre junto, compus uma das músicas mais doloridas da minha carreira: Bisaflor, peça melódica concluída por Chiquinho França. Ele conseguiu organizar, vestir e transformar a triste melodia que fiz, em um tributo à vida, incluindo essa faixa em nosso primeiro CD instrumental, lançado em 2018, chamado “Baixada”. Se quiser ouvir, clique abaixo.
(Acesse: https://open.spotify.com/intl-pt/track/2riwuWNVNorNMWO18tlkQ5).
Então, há de se indagar: quantos poetas, compositores, músicos, artistas em geral usaram o tema “morte” para abastecer suas criatividades? A Editoria de Pesquisa e Extensão do Facetubes tentou responder isso. A começar, por alguns quadros clássicos: Käthe Kollwitz. Essa artista alemã é notável por suas representações intensas das condições humanas, dor, guerra e morte. ZdzisÅ‚aw BeksiÅ„ski, polonês, é conhecido por sua "arte cadavérica", com obras distópicas e sombrias, repletas de imagens de morte, decomposição e paisagens apocalípticas.
Gustav Klimt: sua obra "Morte e Vida" é uma alegoria famosa que aborda as grandes questões da existência humana, contrastando um grupo de vivos coloridos e unidos com a figura solitária da morte, simbolizada por uma caveira. Jacques-Louis David: A sua pintura "A Morte de Marat" é um ícone do Neoclassicismo e da Revolução Francesa, retratando o revolucionário assassinado de forma idealizada para criar um mártir político.
Cândido Portinary usou a morte em seus trabalhos: "Criança Morta". Depois, "Guernica", famosa pintura de Pablo Picasso, criada em 1937 para retratar o bombardeio da cidade espanhola de mesmo nome durante a Guerra Civil Espanhola.
Mas, e na poética brasileira que confronta o luto e a visita aos Mortos? São milhares. Porém, a editoria decidiu começar com Manuel Bandeira. Em “Poema de Finados”, a visita ao túmulo do pai é também um acerto de contas do eu lírico com a própria finitude. "Amanhã que é dia dos mortos./ Vai ao cemitério./ Vai E procura entre as sepulturas/ A sepultura de meu pai./ Leva três rosas bem bonitas./ Ajoelha e reza uma oração./ Não pelo pai, mas pelo filho:/ O filho tem mais precisão./ O que resta de mim na vida/ É a amargura do que sofri./ Pois nada quero, nada espero./ E em verdade estou morto ali".
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Lima Barreto. “Diário Íntimo.” Em poucas linhas, ele junta multidão, instituições e um país que chora em rito público, insinuando crítica à teatralidade do luto e à desigualdade que ele encobre. Ele reflete sobre o Dia de Finados, a miséria ao redor do hospício onde esteve internado e suas críticas à civilização e à religião:“2 de novembro — Foi Dia de Finados. Passou a manhã toda a arrumar defuntos. Enterravam-se ali na praia. A praia era do hospício e do cemitério. Eu via da minha janela a miséria e a fealdade de tudo aquilo. A pobreza, a falta de higiene, o desleixo com que eram tratados os mortos, tudo isso me dava um aperto no coração. Que grande bobagem é a nossa civilização! Que grande mentira é a nossa religião! Tudo serve para encobrir a nossa animalidade, a nossa selvageria. (...)”. Lima Barreto.
Em tempo: Estes escritos não são apenas registros de datas, mas um testemunho pungente da vida dentro e fora da instituição psiquiátrica, onde Lima Barreto denunciava o estigma da loucura, o racismo e as hipocrisias da sociedade carioca.
Nesse contexto, é impossível não citar a grande obra da imortal APB/PR, Dione MS Rosa, autora do livro “Prosa Gótica de Álvares de Azevedo em Noite na Taverna”, análise literária de fôlego, especialmente focada em “Noite na Taverna”, inserindo o gótico no ultrarromantismo — amor e morte em ambiente noturno, cheio de elementos sobrenaturais.
Aliás, cabe aqui — mutatis mutandi — algumas linhas:
“O gótico, inserido numa das categorias da literatura fantástica, aborda o lado mórbido e mais recôndito da alma humana, e instala a presença do não-racional, da desordem e do caos, evocando o primitivismo do inconsciente coletivo que povoa o imaginário cultural da humanidade. Em Noite na taverna (1855), de Álvares de Azevedo, há explícitas relações de componentes gótico-fantásticos que intensificam os aspectos sombrios e macabros do tema principal do romance, qual seja o Liebestod (associação de amor e morte), elementos que inserem a obra na segunda fase do romantismo brasileiro, o ultrarromantismo, uma corrente literária influenciada por atitudes não convencionais e pela poesia de Lord Byron. Os estudos de Howard Philips Lovecraft, Nöel Carroll, Tzvetan Todorov, Antonio Candido, Cileine Alves, Karin Volobuef e Daniel Serravalle de Sá são utilizados como apoio teórico para a análise da narrativa moldura e dos cinco contos nela encaixados. Nessa investigação, o conceito de horror gótico, teorizado por Carroll e Lovecraft, e a noção de insólito, desenvolvida por Freud, são privilegiados(...)”.
Como se vê, há mais poetas e escritores produzindo obras com esse toque de morbidez, morte, dentro do gênero gótico, do que Allan Poe poderia imaginar. Aliás, vale dar uma espiadela nas duas primeiras estrofes de “Espírito dos Mortos”, dele mesmo:
“Tua alma se encontrará sozinha. /Em meio a pensamentos sombrios sobre a lápide cinzenta; / Nenhum, dentre toda a multidão, para bisbilhotar. / Na tua hora de segredo. / Permaneça em silêncio nessa solidão,/ O que não é solidão — pois então./ Os espíritos dos mortos, que estavam de pé/ Na vida diante de ti, estão novamente/ Na morte ao teu redor, e na vontade deles./ Te envolverá com sua sombra; aquieta-te. (...)”. EAP.
Não há dúvidas de que a Literatura é um bálsamo para extravasar insights únicos ligados ao sentimento mortuário. Que tal falar também de Alphonsus de Guimaraens? Fica claro que, no simbolismo católico desse grande mineiro, o luto vira linguagem litúrgica. Em sonetos como “Ossa mea (II)”, as imagens de velório (“mãos de finada…”, “responsos”) encenam a vigília dos vivos diante do além:
“Mãos de finada, aquelas mãos de neve, / De tons marfíneos, de ossatura rica, / Pairando no ar, num gesto brando e leve, / Que parece ordenar, mas que suplica.” “Sinto-as agora, ao luar, descendo juntas, / Grandes, magoadas, pálidas, tateantes…” (AG).
Outro exemplo: João Cabral de Melo Neto. Em “Morte e Vida Severina”, a morte “severina” (pobre, repetida) estrutura toda a peregrinação do auto de Natal. A data de Finados ecoa no tom processional, nos cortejos e rezas que o poema encena. Mário Quintana também pode ser elencado: a morte é companheira íntima, não só tema; no soneto “Minha morte nasceu…”, ela “nasce” com o sujeito e o acompanha como promessa de repouso:
“Minha morte nasceu quando eu nasci, / Despertou, balbuciou, cresceu comigo… / E dançamos de roda ao luar amigo”. (MQ).
Desta forma, a poesia que encara a morte é um laboratório seguro para emoções-limite: pela exposição simbólica e pela escrita expressiva, quem lê e quem escreve organizam o medo, a dor e a memória em linguagem partilhável. Freud falou nisso ao diferenciar o luto que “esvazia o mundo” da melancolia que “esvazia o eu”. Assim, é possível que o poema ou artes mórbidas ajudem a encarar a finitude da construção lógica do contexto?
Vale trazer para a mesma mesa o imenso Octavio Paz. Ele lembra que o culto à morte, em sua ambivalência festiva, é também culto à vida; outro imenso, o Rilke cristaliza o paradoxo ao mostrar a morte irrompendo “no meio da vida”. Julia Kristeva, filósofa, psicanalista e teórica búlgaro-francesa, acrescenta que a literatura é o lugar onde o “abjeto — o que nos repele e constitui — pode ser simbolizado sem nos destruir”.
Por isso, a poesia dita “mórbida” permanece vital para domesticar o abismo com forma e rito, devolvendo aos vivos a possibilidade de continuar com lucidez, coragem e comunidade, porque “encarar a morte na poesia é escolher a vida com mais lucidez”. (Octavio Paz, El laberinto de la soledad).
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