Marco Neves, direto de Portugal
Este texto é baseado num capítulo do meu livro História do Português desde o Big Bang (Guerra e Paz, 2021).
Quando olhamos para os países onde português é língua oficial, encontramos situações muito variadas. Dou três exemplos: em Cabo Verde, o português é a língua da escrita e do Estado, e a população aprende-o na escola; em Angola, está a tornar-se a língua materna de partes significativas da população; no Brasil, é a língua materna de milhões e milhões de pessoas e a língua nacional do gigante sul-americano.
Ao ouvirmos um brasileiro a falar, ouvimos a nossa língua, mas com significativas e curiosas diferenças. Não é só a pronúncia, mas também a sintaxe que é um pouco diferente. Disse «um pouco», mas podia dizer «muito». Dependerá se estou a falar da escrita, do registo formal, de uma conversa de rua, de um artigo académico…
O facto é que os brasileiros chamam à língua que falam e escrevem «português». Mas por que razão o português do Brasil é diferente do português de Portugal?
As razões são interessantíssimas e revelam-nos alguma coisa sobre a natureza da linguagem humana e da história dos povos.
Para começar, quando há um qualquer tipo de separação ou distância entre grupos dentro de uma mesma comunidade linguística, a língua tende a diferenciar-se. Porquê? Porque a língua muda, inexorável e constantemente, por razões biológicas, nunca seguindo um caminho previsível – há muito de aleatoriedade nessa mudança. Ora, se um grupo de pessoas contacta mais entre si do que com outros grupos, tenderá a criar uma série de hábitos linguísticos novos, que se cristalizam em diferenças linguísticas regulares. Ou seja, a língua muda, mas nunca muda de forma previsível. Havendo uma separação social ou geográfica entre dois grupos, a língua mudará de forma diferente no seio dos dois grupos. Ora, no caso do português de Portugal e do português do Brasil, há razões históricas que aceleraram a diferenciação, para lá da óbvia distância geográfica e social, que já existia antes da independência.
Um primeiro factor de separação: no Brasil, os portugueses misturaram-se com quem já lá estava, os indígenas americanos, que falavam várias línguas. Simplificando o processo, podemos dizer que surgiu uma nova língua, chamada língua geral brasílica, baseada no tupi, com influências portuguesas. Esta língua seria incompreensível para qualquer português – mas era a língua que os portugueses do Brasil usavam.
O Marquês de Pombal, em 1757, decide impor o português como única língua oficial, proibindo o uso da língua geral. Esta não desapareceu por completo, mas libertou o lugar central que tinha na sociedade brasileira para que o português se tornasse, indubitavelmente, a língua nacional do Brasil. No entanto, como sempre acontece quando uma população que fala uma língua passa a falar outra, a língua geral influenciou o português, deixando marcas na língua tal como é falada pelos brasileiros.
Depois, como segundo factor de diferenciação, não podemos esquecer a influência das línguas africanas. Os escravos eram levados para o Brasil e tinham de usar o português como forma de comunicação não só com os traficantes, como também entre si. O português era aprendido rapidamente, de forma incompleta, eivado de expressões africanas.
Quando, como o tempo, os descendentes dos escravos começaram a aprender o português como língua materna, deram-lhe palavras de origem africana que apimentam a nossa língua por aquelas terras. A palavra «samba», por exemplo, é disso mesmo testemunho.
Por fim, o próprio percurso do português em Portugal é um factor de diferenciação. Os portugueses não falam hoje o que se falava no século xvi – estamos muito longe disso. Se Camões hoje aparecesse, vindo do passado, nas nossas ruas falaria um português estranhíssimo aos nossos ouvidos, certamente bem distante do português que hoje ouvimos na televisão.
A linguagem humana tem tendência para divergir sempre que há um grupo que contacta mais entre si do que com o conjunto de falantes da língua − e isto é válido em vários níveis de aproximação. Assim, criam-se formas de falar diferentes de classe social para classe social; de terra para terra; até de família para família. Com um oceano no meio e uma separação política de 200 anos, seria praticamente impossível que Portugal e o Brasil não sentissem a língua a afastar-se − e há que contar ainda com a história atribulada do português no Brasil e as influências que a língua por lá sofreu.
As diferenças notam-se não tanto na norma, mas antes nas variedades mais populares da língua. Na escrita formal e na conversa entre gente urbana e com formação avançada, a comunicação faz-se quase sem escolhos. Mas nos registos mais informais e nas variedades regionais ou populares, as diferenças notam-se já de forma muito marcada. Podemos imaginar a língua tal como é falada e escrita em Portugal como uma pirâmide:
Os nomes de cada secção não seguem uma nomenclatura rigorosa; servem apenas para mostrar a ideia geral. A língua é um pouco mais uniforme na norma (lá em cima) e mais variada (e complexa, para dizer a verdade) nas suas realizações mais informais. Lá em cima, temos o português formal escrito, que tenta aproximar-se de forma cuidadosa da norma da língua. Logo abaixo, temos os casos em que falamos em público: o grau de formalidade será ligeiramente menor que o da escrita, mas não muito. Depois, os textos jornalísticos, que − sendo textos formais − já vão beber uma vez por outra à língua nos seus registos informais. Os textos de marketing também se aproximam da norma, mas quem os escreve olha frequentemente para o vocabulário e a sintaxe mais familiar. Enfim, podíamos continuar por aí fora… (Deixei o texto literário lá em baixo, junto das realizações populares da língua, o que poderá chocar alguns, mas fica para provar que esta pirâmide tem muitas formas de ser construída.)
Ora, no que toca ao português de Portugal e ao português do Brasil, o que temos são duas pirâmides já separadas − a proximidade do material linguístico é ainda inegável, mas a dinâmica social da língua segue em separado dos dois lados do Atlântico. Aquilo que é formal ou informal varia; o léxico também já tem as suas divergências; a sintaxe também já não é exactamente a mesma; e por aí fora. Entendemo-nos ao usar a norma, mas temos dificuldade em reconhecer a variedade interna do outro lado.
Se quisermos representar a situação visualmente, proponho esta imagem:
Os dois triângulos cor de laranja que estão no cimo serão os textos mais formais − no fundo, o uso da língua que mais se aproxima da norma. As duas normas (a brasileira e a portuguesa) não se sobrepõem, mas estão muito próximas. Já os textos menos formais, conversas de rua, registos populares e toda a realidade da língua um pouco (ou muito) afastada da norma − esses já estão bem mais distantes. A literatura − que parte da norma, mas tende a usar a língua toda − é um campo onde o jogo de aproximação e afastamento se vê de forma bastante nítida, com tudo o que tem de estranheza e delícia.
Estas duas pirâmides parecem estar a afastar-se. A norma tende a seguir, ao seu ritmo mais lento, o resto da língua − se assim não for, chegamos a uma situação de diglossia, ou seja, de uso de duas línguas na mesma sociedade, uma delas nas situações formais e outra nas situações mais informais (tal como acontece na Suíça ou em cada um dos países árabes). Digamos que, nessas sociedades, a pirâmide se rasgou: a norma e a língua tal como usada na rua são já dois idiomas diferentes.
O Brasil estará um pouco mais próximo dessa situação do que Portugal − mas a norma brasileira também se mexe e não acredito que a pirâmide se rasgue. Por outro lado, ficará certamente mais distante da pirâmide deste lado do oceano… Estes processos são inevitáveis e dificilmente se resolvem com engenharias linguísticas artificiais e pouco eficazes. Não que fosse impossível − afinal, os bascos uniram, através da criação de uma norma artificial, dialectos muito afastados na realidade. O exemplo basco é um entre muitos outros. Mas, repare-se: isso fez-se porque havia uma motivação política muito forte. No caso do português, não vejo motivação política ou social para tentar criar uma norma que volte a aproximar as variantes através do ensino e dos meios de comunicação. As duas sociedades não se vêem como parte de qualquer tipo de comunidade para lá da curiosa proximidade linguística − até a História comum é lida de forma bastante distinta. As duas variantes, principalmente nos registos populares, já respiram sozinhas, como irmãs que foram à sua vida, mas ainda são parecidas. Fujamos de aproximações à força. O mais que farão será criar atrito e ainda mais afastamento.
No entanto, cada um de nós − como falante da língua − ganha muito em aproveitar a proximidade que existe. Fico muito triste com o horror que algumas pessoas sentem em ler ou ouvir o português do outro lado − não há mal nenhum em abrir os olhos e os ouvidos à tal irmã que fugiu para o outro lado do oceano. Vivemos em continentes diferentes, temos já hábitos diferentes: mas ainda nos entendemos bem.
As normas estão ainda muito próximas, mas há, mesmo assim, quem garanta ter dificuldade em ler português do Brasil, mesmo em textos em que as diferenças são mínimas. Há um certo incómodo, provavelmente sublinhado pela nossa tendência para sobrevalorizar as pequenas diferenças. Repare nas seguintes frases:
A umidade é a quantidade de vapor de água na atmosfera.
La humedad es la cantidad de vapor de agua en la atmósfera.
É possível que repare primeiro na «umidade», uma palavra que se escreve de maneira diferente no português do Brasil, no que nas diferenças da versão em castelhano, que são em muito maior número. A segunda frase é identificada, de imediato, como estando noutra língua. A estranheza é, assim, reduzida. Já a primeira está em português e, por isso, temos certas expectativas − a «umidade» parece-nos um erro, quando é apenas a forma correcta na variante linguística em que o texto está escrito. Estas pequenas irritações acumulam-se nas diferenças de vocabulário, sintaxe, fraseologia… Para quem não está disposto a ultrapassar essa barreira das pequenas diferenças, será mais fácil ler noutra língua, em que o cérebro percebe de imediato que não deve esperar gramática nem palavras portuguesas.
Regressemos, agora, à origem. Também sentimos a estranheza da proximidade quando encontramos textos galegos. Reparemos nas primeiras palavras do livro Ela, maldita alma, de Manuel Rivas:
Aquela primavera chegara axiña e en demasía. Á hora do café, pola fiestra que daba á horta, Chemín mirou a festa de páxaros na vella maceira florida.
Um português que não conheça o galego fica baralhado. Neste caso, a expectativa da maioria dos falantes vai no sentido de encontrar diferenças. Assim, a proximidade que existe é surpreendente: a língua dos galegos não parece tão distante da nossa como pensávamos. A proximidade é suficiente para querermos corrigir o acento em «á»… A proximidade entre o português e o galego é um segredo bem guardado em Portugal − e mais ainda no Brasil.
O galego partilha com o português várias características: os artigos definidos, a queda do «n» e do «l» em certas posições, os diminutivos − e muito, muito mais. Quando a nossa fronteira norte foi estabelecida, há tantos e tantos séculos, o material linguístico de um lado e do outro era muito semelhante. Depois da criação de Portugal, a linguagem das ruas transformou-se, a sul, na língua oficial do reino, com gramáticas, norma, uso na Corte − isto, claro, ao fim de alguns séculos, que o processo não foi nada rápido.
A norte do Minho, as pessoas continuaram a falar o que sempre falaram − mas, depois do florescimento literário medieval de que todos ouvimos falar na escola na forma das Cantigas de Amigo, a língua ficou nas ruas, com pouco uso escrito e formal.
Só no século xix, o galego renasce como língua literária − mas note-se que nunca morreu. Esteve apenas a ser usado no lugar onde as línguas nascem, se desenvolvem e morrem: nas bocas dos falantes. Uma larguíssima maioria de galegos sempre usou o galego como a sua língua do dia-a-dia. Se aterrássemos numa rua galega do século xix, seria difícil ouvirmos conversas entre galegos em castelhano.
Quanto ao uso oficial do galego, só o encontramos no final do século xx − precisamente quando o uso real, na rua, começou a diminuir. Hoje, o galego é uma das línguas oficiais da Galiza − mas já é usado por uma minoria da população.
Existem duas normas: o galego reintegracionista − defendido por quem usa a proximidade linguística para reintegrar o galego no mundo da língua portuguesa − e o galego oficial, ensinado nas escolas, usado nos meios de comunicação social e em muitos livros e que encontramos nas placas da estrada quando vamos à Galiza. Este galego oficial usa «ñ» e «ll» (e muitos «x»), enquanto o reintegracionista usa «nh» e «lh» (e o «j»/«g» onde a versão oficial usa o «x»). Mesmo dentro de cada campo, há variações, mas não vale a pena falar delas agora.
Para tentar mostrar de forma um pouco mais visual a relação entre o português e o galego, uso novamente as pirâmides.
O desenho é uma simplificação, claro. Mas o que quero dizer com ele é que há uma maior proximidade entre as formas populares e informais do que entre as normas. Se a proximidade das normas brasileira e portuguesa nos podem levar a pensar que a língua das ruas está mais próxima do que realmente está, no caso do galego, acontece o contrário: se olharmos para as normas, ficamos convencidos de que estão mais distantes do que realmente estão. É fácil encontrar palavras nos dicionários galegos que são palavras populares em Portugal.
Sublinho a proximidade que existe entre o português de Portugal e o português do Brasil − mas também entre o português e o galego. Uma proximidade que convive bem com as nossas antigas e desejadas separações políticas. Afinal, somos um país antiquíssimo − para quê ter medo do que nos aproxima de outros povos?
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Este texto é baseado num capítulo do meu livro História do Português desde o Big Bang (Guerra e Paz, 2021).
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