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Colunista Socorro Guterres: “Sobre a literariedade clássica”

Socorro Guterres é graduada em Odontologia pela Universidade Federal do Pará. Graduada em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Mestra e Doutora em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

03/11/2024 às 04h37 Atualizada em 03/11/2024 às 12h05
Por: Mhario Lincoln Fonte: Socorro Guterres
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Socorro Guterres, escritora, poeta e autora do premiado livro “Nos Domínios da Linguagem (Veredas)”.
Socorro Guterres, escritora, poeta e autora do premiado livro “Nos Domínios da Linguagem (Veredas)”.

Socorro Guterres, teve seu nome indicado para uma Cadeira na Academia Poética Brasileira, em recente reunião da Executiva da APB. Deverá entrar em votação no começo do próximo mês.

 

Sobre a literariedade clássica

Socorro Guterres

Por que ler os clássicos?  Ítalo Calvino nos responde muito bem no artigo que nomeia o livro com esse questionamento. Eu, particularmente, aprecio  as epopeias, recorrendo muitas vezes a releituras, por uma das razões exposta por Calvino, qual seja a interlocução entre o passado e o presente.  Claro que sem nenhum preconceito literário, pois sou igualmente apreciadora da literatura contemporânea e considero importante um paralelo entre essas leituras. Voltando a Calvino, escritor italiano nascido em Cuba, um dos motivos que considero mais sucinto no artigo " Por que ler os clássicos?" é simplesmente este: ler os clássicos é melhor do que não ler.

   Assim, destaco as epopeias, poemas extensos que narram feitos de um herói, históricos ou lendários, na representação de uma coletividade. Esse gênero literário surgiu no ocidente com a "Ilíada" e a "Odisseia”, atribuídas a Homero, poeta épico da Grécia antiga. Lembro de uma aula sobre essas obras em que o professor inquiria a classe sobre quem seria na época moderna Ulisses, o protagonista da Odisseia, que após muitas aventuras e combates tenta regressar ao seu reino em Ícada. Em intempestiva resposta sugiro que Ulisses é o herói exemplificado no cidadão atual, em seu enfrentamento dos obstáculos cotidianos até a volta para casa ao fim da jornada diária. Com essas reminiscências invoco a sábia e poderosa Calíope, pois se vamos falar sobre épicos, temos que clamar às musas, a fim de obter auxílio na explanação, mesmo que breve, de um texto pelo qual tenho especial apreço: a "Eneida" , de Publio Virgílio Marão, considerada por Voltaire, escritor e historiador francês, como uma das mais perfeitas da humanidade.

   Virgílio, nascido próximo a Mântua na Itália, viveu entre os anos 70 e 19 AC e teria recebido do imperador Otávio Augusto a incumbência de criar uma história identitária de Roma através do mito. Assim como a "Ilíada" e a "Odisseia" cantaram feitos heroicos gregos, transmitidos oralmente, a "Eneida", texto escrito, traduziria o espírito romano, que à época de Otávio, sobrinho-neto de Júlio César, vivia a Pax Romana, com guerras civis pacificadas, cultura, poesia e artes. E a construção grandiosa de Roma seria contada através do herói da "Eneida ", Enéias, cujos descendentes futuros, Rômulo e Remo, confirmariam a missão de fundar Roma. Fernando Pessoa no poema "Ulisses", do livro "Mensagem", diz que “o mito é o nada que é tudo", e o mito é tema central na "Eneida", que conta a história do troiano Enéias, filho de Anquises e Vênus, e seu papel nas origens de Roma. O que clamo a Calíope, preciso ressaltar, é despertar algum interesse por texto tão grandioso, e este sim trará ao leitor o prazer inequívoco da leitura.

   A narrativa in media res, ou seja, iniciando pelo meio da ação, mostra o mar revolto por tempestades que jogam os navios do fugitivo Enéias e seu compatriotas para a costa de Cartago, nas margens africanas, após percorrer, em  longo tempo, praticamente a mesma trajetória dos locais nos quais passou Ulisses.  Lembro que Enéias tem seu futuro delimitado pelos deuses, qual seja encontrar a Itália e fundar Roma, ainda que as desavenças entre esses mesmos deuses o testem duramente até atingir o destino traçado. 

Ao chegar em Cartago é acolhido pela rainha Dido, que tem história similar a de Enéias, pois também é uma refugiada que fundou sua própria cidade. Ela pede para escutar as aventuras de Enéias, e acaba por apaixonar- se pelo troiano, devido às artimanhas da deusa Vênus. Assim ficamos conhecendo os infortúnios que levaram Enéias até ali, desvendando um perfil filosófico, especulativo e piedoso do personagem e sua tentativa inicial de resistir a invasão grega. Contudo, obedecendo aos deuses, ele foge de Troia carregando o pai idoso e conduzindo o filho Ascânio, criança ainda, e a esposa, Creusa, a qual acaba por perder- se em meio à cidade incendiada pelos invasores gregos que  usaram o ardil do célebre cavalo de madeira. Nessa fuga em que carrega o velho pai nas costas, as pernas de Enéias representariam a razão e os olhos de Anquises, a intuição.

  A "Eneida" dispõe- se em 12 cantos, sendo que a primeira metade assemelha-se à " Odisseia" ,  em relação à longa jornada no mar, e a segunda parece inspirar- se na "Ilíada", com todos os acontecimentos bélicos,  os jogos fúnebres em homenagem a Anquises, a aliança com Evandro, a morte de Palante, a disputa por Lavínia com Turno, e a descrição do escudo de Enéias; que faz paralelo, ao escudo de Aquiles na "Ilíada" , tudo isso e muito mais  é exposto em perfeitos versos hexâmetros. Não esquecendo ainda as subnarrativas, como a história de Camila, virgem guerreira.  Embora as personagens femininas relevantes da trama, como Creusa, primeira esposa e Lavínia, a quem Enéias desposará, estarem praticamente silenciadas, Dido tem voz ativa na narrativa, inclusive em passagem dramática do enredo  tira a própria vida, devido a partida de Enéias impulsionada pela busca da Itália.  Peripécias incontáveis proporcionadas por deuses e prodígios chegam a levar o herói ao mundo subterrâneo dos mortos, o Hades, onde encontra Anquises e outros grandes guerreiros. Tudo contado num tempo magnífico, apresentando um passado anunciado no presente e discorrendo sobre o futuro.

   Desse modo, "Eneida " é poema fundamental para a literatura ocidental, sobretudo pela origem das línguas neolatinas, de onde ramificaram-se, por exemplo, o francês, o espanhol e o português.  Nessa breve apresentação a intenção é fomentar o gosto pela literatura épica, e como disse Calvino, repito aqui, "ler os clássicos é melhor do que não ler".

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