Eloy Melonio.
“Viver e não ter a vergonha de ser feliz.”
É isso aí, Gonzaguinha! Você está coberto de razão em valorizar a vida e a vontade de viver. Mesmo na pior das circunstâncias, morrer nunca é uma boa opção. A vida é viver, viver, e viver.
Todos os dias, milhares de seres respiram o ar da manhã e se preparam para mais um capítulo de sua história. “É a vida, é a vida, e é bonita.”
Dizem as boas línguas que “ninguém quer morrer”. E parece que elas têm razão. Pode haver exceções, mas não conheço nenhuma. Porque morrer (quase) nunca vale a pena. O soldado que morre não vê a paz restaurada. O pobre que morre não chega rico ao céu. Nem o rico, mais rico. Na morte, “uma vez pobre, sempre pobre”, mesmo que seja torcedor do Flamengo.
Sem radicalizar, morrer pode até valer a pena. Morrer de rir, por exemplo. Morrer por algo que nos dá prazer (sonhar, cantar, amar). Morrer de alegria por estar com os amigos. Morrer de amores pela pátria amada.
Em sua poética filosófica, Quintana revela: “Tão bom morrer de amor e continuar vivendo”.
Até numa piada, como esta do padre Heráclito, um fiel cristão de 95 anos, a morte é rejeitada veementemente. Numa situação de perigo, o piloto do teco-teco em que viajava o ancião anuncia que o avião vai cair. “É hoje que a gente vai se encontrar com Jesus”, gritou. Ao que, triste, respondeu: “Não me diga uma desgraça dessa”.
A realidade é que “uma vez morto, eternamente morto”. Até os mortos concordam. E os vivos também: "Fazer o quê?". E, aí, fazem o que têm de fazer: enterram seus mortos e agradecem a vida. “Tão natural quanto a luz do dia”. E mais: “E viver e cantar/ Não importa qual seja o dia (“Céu azul”, Charlie Brown Jr.). Porque alguém também já disse: “A vida não para, não para, não”.
Não apenas enterrá-los, mas mantê-los vivos em nossa memória. Sua história e suas conquistas, seu choro e seu riso. Sua alegria e sua tristeza. Todo ano, lembramos nossos heróis, nossos ídolos, nossos mártires: Chico Mendes (28 de dezembro); Ayrton Senna (1º de maio); Tiradentes (21 de abril). Não lembro, nos recentes anais, de uma morte mais chorada, mais celebrada, mais comentada que a de Marielle Franco (14-3-2018). Essas e tantas outras: umas mais, outras menos, mas sempre reverenciadas.
Na véspera do Dia de Finados, o GLOBO REPÓRTER revisitou a vida e a obra de Machado de Assis (29-9-1908), mais vivo do que nunca nas vozes de tanta gente, no palco de tantos artistas, nas páginas de tantos leitores. E nas ruas do Rio de Janeiro. Fiquei sabendo que a Rua Matacavalos, onde Bentinho morava, era, na época, uma rua “cheia de buracos e atoleiros”.
E os nossos entes queridos?
Pois é, esses também. Não apenas eles, mas todos têm um dia comum. O “dia de todos os mortos” reúne ricos e pobres, bonitos e feios, gente boa, gente não tão boa assim. Acho que é o dia mais democrático do calendário, em que todos são homenageados ou homenageantes. Quem ainda não está lá, não duvida que seu dia vai chegar.
O Dia de Finados é uma data originalmente católica que vem desde o século II. Um dia em que os fiéis rezam pelos seus falecidos. E que "outros", como eu, apenas visitam seus túmulos para manter viva a sua imagem. E confirmar que suas vidas não morreram em nossas lembranças.
E, assim, nessa primeira sexta-feira de novembro (1), cumprimos, eu e minha esposa, o ritual de visitar nossos mortos. Fomos na sexta-feira, dia anterior ao feriado. Menos gente, mais espaço, mais reverência. Uma jornada matutina sob um sol de lascar, passando por três jazigos, sendo dois principais: meus pais e uma irmã, os pais dela e um irmão. Olhem só quanta coincidência!
Essa visita anual a um cenário silencioso e melancólico serve para alegrar nossas almas. Porque será nesse mesmo cenário que, um dia, vamos receber nossos visitantes. Não tem pra onde correr. Até porque nossas pernas estrarão fora de combate. Pois é, amigos, a morte, antes de ser ela mesma, é a sombra da vida. Sabe aquela sombra que sempre nos acompanha. Quando a luz se apagar de vez, ela também se apagará no vazio da nossa ausência.
Mas nem tudo é sisudez nesse momento. Há sempre uma brecha para a descontração. Duas funcionárias do cemitério se aproximaram e nos ofereceram um panfleto sobre os tipos de planos para “comprar” jazigos. Num insight bem-humorado, agradeci: “Acho que não vou precisar. Meu plano é ir direto para o céu”.
E, assim, passeamos por uma grande área dessa “cidade dos pés juntos” — como meu pai gostava de dizer — com um banquinho, um galão com água (5l), água sanitária, esponja. Repusemos as flores e deixamos os jazigos bem limpinhos. O que fizemos ali não foi tanto por “eles”, mas por “nós” mesmos.
O tempo passa, os passarinhos passarão e a saudade ficará para revisitarmos o nosso passado.
(*) Eloy Melonio é professor, escritor, letrista e poeta.
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