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Exclusivo. Nova crônica do poeta Raimundo Fontenele: “Um verão muito louco”

Raimundo Fontenele é indicado para a Academia Poética Brasileira.

22/11/2024 às 07h58 Atualizada em 22/11/2024 às 12h46
Por: Mhario Lincoln Fonte: Raimundo Fontenele
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Capa: Natanael Castro
Capa: Natanael Castro

Nota de Raimundo Fontenele: "Pedaços de Alberto Caronte, livro de contos, deverá ser minha próxima publicação, a sair nos primeiros meses de 2025. Um trabalho difícil para quem se acostumou a fazer versos. O conto que vai publicado aqui no Facetubes por obra e graça do meu amigo Mhario Lincoln é uma pequena amostra do que irão encontrar no livro que tem um barqueiro completamente alucinado no leme de uma embarcação à deriva. A capa, belíssima, é cria de um outro amigo, o Natanael Castro, um cara pai dégua. E o prefácio é do poeta Rogério Rocha, mais um grande amigo. Cercado, assim, de amigos fiéis e poderosos tudo vai dar certo."

O CONTO


“É hora de partir, vocês para a vida eu para a morte. Qual destino é o melhor, só os deuses sabem.”   (In Fédon, de Catão)


    Quando bombas e aviões começaram a cair, destruindo edifícios, matando pessoas e ferindo o coração do mundo capitalista, fazia três longos anos que o maestro Jonas Katene tinha mergulhado no fundo do poço.


    Sua casa era a mais completa confirmação do que a loucura, a solidão e o abandono de si mesmo podem fazer a um ser humano. 
    O tapete da sala cheio de furos e pontas de cigarro, o odor acre da cinza e dos copos, pratos e panelas sujos de bebida e comida provocando náuseas. Moscas por toda parte. Lixo jogado pelos cantos da casa.


    Sua existência foi sendo despetalada pela vida afora. A criança que perdeu uma bolinha de gude aos três anos de idade, a bolinha rolou e foi cair logo em um bueiro da cidade, choveu, a rua era de terra batida e a lama sepultou seu único brinquedo para sempre; o adolescente que perdeu uma namoradinha de infância por causa de fofoca própria de cidadezinha do interior; o jovem sonhador e romântico que se viu mergulhado no álcool e na droga, fechando qualquer possibilidade de conquistar o amor de uma jovem com quem pudesse salvar-se desse monstro chamado realidade.


    E depois disso, a luta de um homem para mudar o seu destino na terra. O cara nadando contra a correnteza. Um casamento fracassado, a separação depois de mais de dez anos juntos, os filhos tinham ido embora com a mãe, pouco sabia deles, e só lhe restara a música e seus enigmas que precisavam ser decifrados.


    Vale a pena contar essa história? Vale a pena viver?


    Dia 28 de Outubro, dia do seu aniversário, o maestro Jonas Katene estava no bar, logo cedo, com mais uns três amigos, bebendo cerveja e festejando seus sessenta e quatro de vida. Quando saiu dali, como não tinha para onde ir e nem o que fazer, alugou um carro e foi até a casa de Marialva, apesar do nome, uma morena de meia idade, cheia de carnes e curvas, não como esses cabides magricelas que os estilistas gays usam para pendurar suas exóticas criações. 


    A Marialva tinha sempre uma cervejinha gelada que ela servia com um tira-gosto de caldo de feijão, muito bem temperado, uma linguicinha frita, um torresmo no capricho, ou qualquer outro desses aperitivos que fazem a alegria dos biriteiros.


    E nunca faltava aquilo que os homens chamavam, no seu linguajar vulgar e preconceituoso, mas verdadeiro, de carne nova no pedaço. Marialva agenciava garotas de programa, muitas delas menores de idade, tipo quinze anos, e até menos.


   

O autor, poeta Raimundo Fontenele. (Arte: mhl).

No quarto com uma delas, depois de tomar um comprimido de viagra, um modismo e um milagre sexual, o maestro Jonas viu a garota nua e magricela, o corpo jovem mas cheio de manchas e cicatrizes, uma menina que chupava o seu pênis como se chupasse um picolé, um frio na boca e sem nenhum entusiasmo. Quando o maestro Katene chegou ao orgasmo, junto com o esperma vieram também lágrimas amargas, difíceis de suportar.


    O velho músico só conseguiu chegar a sua casa por volta de onze horas da noite. Devolvera o carro que havia alugado, e da praça até sua residência, cerca de uns trezentos metros, mais se arrastara que andara, tão bêbado estava o outrora célebre maestro Jonas Katene.   


    No fundo daquele poço chamado desespero esperou, deitado de papo pro ar, que chegasse mais um dia com seus estragos. Foi várias vezes até a geladeira para tomar água e via o relógio marcando aqueles minutos e horas de eternidade: uma hora, duas, três, quatro horas e um galo cantou ao longe. Cinco horas ouviu um barulho de moto. O arrastar de sandálias na chuva. Seis horas colocava a garrafa na porta. O leiteiro passava por volta das seis e trinta.


    Sabia que ia morrer e por isso tinha pressa em terminar aquela sonata que estava compondo há quase vinte anos. Sonata Nupcial Nº 2, era esse o nome da composição. Piano e violoncelo, apenas esses dois instrumentos poderiam executar, com a exatidão que o maestro exigia, aquela obra de arte.


Obra de arte. Era assim que Jonas Katene via seu trabalho. Não ter dinheiro e não ser famoso não tinha a menor importância. Havia o julgamento da crítica mas, para o experiente músico, esta também não importava. Ele costumava dizer que crítica mesmo, para valer, só a do próprio tempo. E, depois, valia mais a autocrítica do que a crítica do mundo inteiro.


Pelo noticiário, o maestro pôde ver que tinha acontecido mais uma guerra absurda, vista pela TV com grande ansiedade e tesão. Muito sangue, uma grande carnificina. O povo vibrava satisfeito.


Talvez por isso, a sonata composta de apenas dois movimentos, um chamado andando e o outro intitulado fazendo, iniciava com um urro imenso de violoncelo, e quem já ouvira alguns trechos por alguns minutos, executados pelo próprio maestro, perguntava-se como ele conseguia arrancar do violoncelo um som tão trágico e ao mesmo tempo tão belo, como se fosse mesmo uma voz humana. E como espalhava pelo ar e em todos os nossos sentidos acordes que nos lembravam tanques de guerra, cabeças dilaceradas, horrores hospitalares; fanatismo e descrença, exatidão e insuficiência, pacificação e rebeldia.


Logo depois do urro entrava uma pausa longuíssima, entrecortada por verdadeiros soluços humanos que o maestro misturava à execução, agora, de notas de piano caindo como grossos pingos de chuva caem nos telhados.


Nesse diálogo musical entre piano e violoncelo, e do maestro Jonas Katene consigo próprio, ouvia-se, então, uma música caudalosa, redonda, perfeita e completa em si mesma. E às vinte e três horas e trinta minutos de uma sexta-feira chuvosa e fria o maestro Katene finalizou seu trabalho.


Jonas Katene permaneceu por alguns minutos de pé, com a mão na maçaneta da porta da rua, e em seguida correu alucinado pelas ruas mais próximas, não importava o mundo, enlouquecera, mas sua alma sorria. A alma do seu trabalho, da sua música e da sua vida.
A rua pela qual corria agora o maestro Jonas Katene estava convertida numa verdadeira praça de guerra, como qualquer metrópole deste início de século. O músico nem percebeu quando um terrorista, encapuzado e com fardamento militar, arrancou com os dentes o pino brilhante de uma granada, arremessando-a em sua direção.

 

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