Raimundo Fontenele
Dia frio, chuvoso, aquela chuvinha fina ou aquela chuva fininha, vejam como fica melhor, eu estava saindo do expediente da UnB, eram cinco horas da tarde e caminhando no enorme pátio do campus, tenho uma grande surpresa que me fez parar de repente. Era uma visão ou uma pessoa de carne e osso, minha conhecida e amiga?
Apressei o passo para nos encontrarmos antes que ele tomasse um rumo diferente do meu e eu perdesse a oportunidade de saber se ele era mesmo quem eu estava pensando.
— Pimenta, isso é tu, rapaz?
Ele me olhou de perto, reconhecendo-me, estendeu a mão cumprimentando-me com verdadeira e real alegria e exclamou:
— Há quanto tempo, hein, cara?!
Fomos andando em direção ao restaurante universitário e colocando o papo em dia. Em São Luís ele era um dos frequentafores das nossas rodas de fumo e malandragem. Saíra de São Luís para ir estudar medicina na Bolívia e nesse meio tempo houve doença, passou por uma Traqueostomia, que é um procedimento cirúrgico que consiste em fazer uma abertura na parede da traqueia. O objetivo dessa cirurgia é manter a traqueia aberta por meio de um tubo de metal ou de plástico, conhecido como cânula.
Tinha sofrido muito esses anos todos, mas estava bem, conseguira sua transferência para a UnB onde continuava seu curso de medicina e dali fomos até a ala onde ficavam os alojamentos estudantis. Era uma espécie de quitinete, menor até, e sentados em sua caminha de solteiro ele enrolou um baseado que fumava através daquele furo na garganta. Dei umas tragadas pra valer na “erva maldita” ou “mato santo” como chamávamos a popular diamba, esse o nome muito usado nos anos setenta por nós maranhenses.
Falamos e rimos durante mais de uma hora em que permaneci ali e, ao despedir-me, ele me forneceu o nome e o local do cara com quem eu podia adquirir maconha: chamava-se Bizuca e traficava ali nas imediações do Conjunto Venâncio.
Saí meio atordoado pela lombra do cigarro e também pelo inusitado do encontro. Não nos encontramos mais, pois não o procurei nem ao tal traficante, e eu estava decidido a abandonar o vício e levar uma vida normal e sossegada.
Já era meados de julho quando saí da casa da minha prima Olga e fui hospedar-me na casa da minha prima Terezinha Cunha que vivia com sua irmã Maria Rita, de quem era zelosa cuidadora, numa casa espaçosa na asa sul, não muito distante do Hospital da Marinha onde trabalhava como Enfermeira.
Cheguei de muda num fim de tarde, levando uma mala, mais uma maleta e uns três quadros, pintados e me presenteados, dois pelo pintor e amigo Nagy Lajos e o outro, maior, pelo meu grande amigo César Teixeira, músico, poeta, pintor, um gênio da raça. Uma pintura que era uma mistura de vários estilos, expressionismo, surrealismo, realismo mágico, uma fusão de tudo e que conferia àquela obra um caráter único e personalíssimo.
Quem veio me receber à porta foi a Maria Rita, dizendo que a Terezinha não demoraria chegar do trabalho. E foi me ajudando a acomodar-me no quarto a mim destinado e falando sem parar, e, desembrulhando os quadros, pôs logo um olho grande no que o César me dera. Falou que era uma coincidência eu estar chegando lá justamente no dia do aniversário da Terezinha e que bolo e refrigerante não me faltariam.
Uma meia hora depois chega a Terezinha, e mal havia adentrado em casa eis que a Maria Rita, abraçada ao meu querido quadro, entrega-o à Terezinha dizendo:
— Olha, Terezinha, o presente de aniversário que o primo trouxe pra ti.
A Terezinha olhou surpresa, veio me dar um abraço que retribuí parabenizando-a, e ela me perguntou:
— É verdade, primo, é meu mesmo?
— Sim, Terezinha, é um presentinho do seu primo e amigo.
Eu falei aquilo com a voz embargada pela emoção, mas não pela data natalícia e sim por causa daquele golpe baixo que me aplicara a Maria Rita. Sabia que ela tinha alguns problemas psicológicos sérios, surtos e tal, e como inquilino cabia a mim por a viola dentro do saco e fomos conversar e curtir o aniversário da Terezinha.
A propósito, no meu livro PEDAÇOS DE ALBERTO CARONTE, no conto Nos Anos 60, esse quadro é descrito como uma obra do pintor Ernesto Fontes, e assim a ele me refiro:
Ernesto havia escolhido 20 quadros para montar a sua exposição. Vinte e um, contando com aquela tela, antes nua, e que agora estava ali diante de seus olhos, enfim terminada. E que lhe consumira, pintando, cerca de dezoito horas de trabalho ininterrupto.
O quadro fora pintado nas cores verde e cinza. Um olho imenso projetava-se do centro do quadro, expandindo-se, enquanto um casal de mãos dadas estava prestes a entrar naquele olho. De qualquer ângulo que a gente olhasse aquele quadro sentia-se incomodado, era como se aquele olho estivesse vivo e visse dentro de nós. Ao contemplá-lo, sentíamos não apenas incomodados, mas também devassados em nossos segredos mais íntimos.
Entretanto, se olhássemos de um determinado ângulo e à noite o casal transformava-se numa espécie de Cristo crucificado; e de um outro ângulo, e à luz do sol, nem casal nem Cristo crucificado, o que se via, na verdade, era uma espécie de espantalho.
Enfim, era um quadro belo e perturbador. Parecia que todos os estilos de pintura se fundiram naquela obra para torná-la tão profunda e original. Tinha a loucura de Bosch e o desespero de Van Gogh: a alegria de Paul Cézanne e a ingenuidade dos pintores acadêmicos; o barroco e o impressionismo; a genialidade de Picasso e o surrealismo mais desenfreado”.
Além de nós três havia mais um morador, o Emerson, nosso sobrinho, seu pai Antônio Cunha, também meu primo, vivia com sua família no Rio de Janeiro, e ele estava ali pra estudar, mas as coisas não estavam muito bem pra ele.
A Maria Rita quando implicava com alguém, mesmo parente, era melhor o sujeito picar a mula e se mandar, pois ela não lhe daria refresco, e era isso que estava vivendo o jovem Emerson.
Era tipo: sujou um prato, bebeu água e deixou o copo sobre mesa, não limpa os pés antes de entrar em casa, e mais isso e mais aquilo. Lembro de um episódio que mostra bem o grau de antipatia que ela nutria por ele nessa época em que lá cheguei.
Se você tem chulé, enquanto calçado, com o sapato bem fechado, ninguém sente odor nenhum. Pois presenciei uma cena que me deixou comovido com o sofrimento que o Emerson estava passando nas garras da Maria Rita.
Passava das dezoito horas, a Terezinha chegara do Hospital e fora pra seu quarto, eu fiquei ali na sala com a Maria Rita, quando o Emerson foi chegando e ainda na soleira porta, ao girar a chave na fechadura, a Maria Rita levantou-se abanando o nariz e falou dirigindo-se a mim:
— Tá vendo, primo, tem quem guente um chulé desse? Tu tá sentindo esse mau cheiro, né?
— Sinceramente, Maria Rita, não estou sentindo mau cheiro nenhum — retruquei esperando a reação dela.
— O quê? Tu está sentindo e não quer constrangê-lo ou então…
— Mas ele nem entrou direito em casa, não desatou os sapatos nem nada, como sentir algum odor, mau cheiro — eu retruquei.
— Já sei… — ela disse, enquanto se diria pra cozinha, resmungando pê da vida.
— Liga não, Emerson, ela é assim mesmo.
— Sei, mas tô voltando pro Rio, só estou esperando a transferência do colégio, não aguento mais, ainda por cima desempregado — ele me respondeu.
Ficamos conversando um pouco e ele me disse que seu plano ao chegar no Rio era fazer teste em algum clube de futebol, pois era esse seu grande sonho. Enquanto a gente conversava a Maria Rita ficava num vai e vem entre a cozinha e a sala, sempre dizendo algo com relação ao chulé ou à falta de higiene do pobre Emerson, que não demorou mais entre nós. Uns quinze ou vinte dias depois recebeu sua transferência escolar e se mandou pra Cidade Maravilhosa.
E assim seguia minha vida, nem doce nem salgada. Às noites, deitado numa cama de solidão, ouvia Mamunia do Paul Mc Cartney e outros rocks, mas nem li nem escrevia nada.
Um dia minha prima Maria Rita surtou, não tinha como suportar e lá fomos nós, eu e a Terezinha, no seu carrinho Karmann Ghia branco, levá-la até o Vale do Amanhecer. Próximo a Brasília, era um lugar onde pontificava Tia Neiva, ex-caminhoneira que, a certa altura da vida, passou a ter visões de natureza espiritual e cujo guia e mentor era o Pai Seta Branca. Aquilo virou uma espécie de conunidade-santuário, onde médiuns de diversas religiões se misturavam, formando uma espécie de sincretismo barroco, e que se destinava à cura, principalmente, das pessoas com problemas psicóticos, que eles atribuíam aos espíritos do mal, encostos, fulano está com um caboclo incorporado, eram assim os diagnósticos.
Paramos lá, eu nem desci do carro, a Terezinha levou a Maria Rita até um daqueles templos e, após cerca de meia hora, retornou tendo deixado sua irmã aos cuidados de Tia Neiva.
Ela iria ficar lá pelos menos uns cinco dias, de onde voltaria mais calma, me disse a Terezinha, acrescentando que aquela não era a primeira vez que tal fato acontecia. Deu partida no carango e retornamos a Brasília mais aliviados.
(CONTINUA NA PRÓXIMA QUINTA-FEIRA)