Natal dos Invisíveis
Jorge Cruz – Direto de Olinda. (Da APB/PE).
A voz chegava de mansinho e dizia: “Vim te ver”.
Aquilo me assustava, abria os olhos e não via nada. Como esse nada fosse comum em minha vida. Voltava a fechar os olhos. Assim eu não via o tempo passar. A fome era o meu despertador e tentava me levantar. Precisa acabar com aquela dor da fome. Olhei com surpresa e lá estava um saco com comida dentro. Ainda quentinha. Quem será esse anjo? Será aquela da voz?
Como e volto a fechar os olhos. Agora sem fome, espero por mais um dia. Espero o que? Não sei. Dias, meses, anos e a mesma coisa. Por que insisto em ficar vivo?
A voz apareceu novamente: “espero que esteja bem”.
Sobressaltei-me e num pulo me sentei. Procurei a quem me disse isso e mais uma vez o saco com comida estava lá.
Pensei que já estivesse morrido e que era normal isso no mundo dos mortos, mas vejo as pessoas passando na calçada. Os mesmo olhares: pena, desprezo, raiva, aqui e acolá compaixão, mas os olhos de quem eu procuro nunca os encontro. É. Não morri ainda...que pena!
“Feliz aniversário”.
Agora é demais! Quem foi? Procurei e nada. Como assim?! Aniversário de quem? Ao meu lado um bolinho, graciosamente decorado com glacê. Sim. Ainda me lembro o que era glacê. Depois de tanto tempo. Aniversário!? Seria o meu? Perguntei a uma pessoa que passava que data era hoje. Ela quase não me respondeu. Olhou-me com desprezo como quem diz: “pra que um mendigo que passa o dia todo dormindo quer saber a data?” Abusado respondeu: “24 de dezembro” e depois, meio que tocado pela lembrança da data, soltou um “feliz Natal” entre os dentes de um sorriso forçado.
24 de dezembro, realmente era o que diria ser o meu aniversário. Tempos atrás eu comemorava com minha família. Sim, tinha família. Esposa e filha. A memória falha e não lembro bem dos seus rostos. Também, depois de tantos anos de alcoolismo e drogas diversas, minhas lembranças ficaram borradas. A saudade veio levemente apertar o meu peito...Ah, melhor assim! Viveram com certeza muito melhor sem mim. Afastei o pensamento de família pra longe.
Saboreei o bolo mimoso. Estava uma delícia. Voltei a fechar os olhos. Queria que este dia passasse o mais rápido possível.
“Feliz Natal”.
Com um bote estendi a minha mão para segurar quem era a voz, antes que ela desaparecesse. Agarrei um braço, fino, pensei. Abri os olhos ainda deitado. A moça estava espantada. Arregalou os olhos e quase caiu sentada.
_ Então é você o meu anjo? Disse para a moça assustada, mas que logo se recompondo do susto confirmou.
_ Sim sou eu mesma. Desculpa se lhe acordei tão cedo. É que eu trabalho muito cedo e é a única hora que eu tenho de vir lhe trazer alguma coisa.
_ Por que você faz isso?
_ Então, não se lembra de mim? Disse a moça mais linda que eu já tinha visto.
_ Desculpa, não sei quem você é. É de alguma igreja? De vez em quando eu entro em uma para me proteger do vento frio.
_ Pai, eu sou Lívia, sua filha. Da moça surgiram duas lágrimas que correram suas faces e pingaram na calçada.
Então, aquelas lembranças que lhe apertavam o peito, vieram mais fortes. Misto de alegria e dor, ternura e vergonha. Depois de tantos anos à revia. Minha pequena Lívia, hoje uma mulher lindíssima.
Escondi o meu rosto com meus trapos.
Ela se lembrou que era o meu aniversário. Que ironia nascer na véspera do dia do Cristo, 24 de dezembro.
_ Desculpa, tenho que ir. Vou trabalhar. Feliz aniversário novamente e feliz Natal.
Balbuciei algumas palavras desconexas pois a garganta estava fechada.
_ Amanhã venho te ver de novo.
Amanhã não estarei mais aqui, pensei eu. Vou me afastar, pois invisível eu sou e quero permanecer assim.
Fui para outro lugar. Com o coração partido em mil pedaços. Fujo.
Dias depois: “Te encontrei novamente”
De olhos fechados pude sentir que a minha invisibilidade não estaria mais me escondendo.
Que seja então a Tua Vontade.