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“MEMÓRIAS DOS MARES DO SUL” (Continuação do Capítulo I - No oco do mundo)

Raimundo Fontenele é convidado da Plataforma do Facetubes.

Mhario Lincoln
Por: Mhario Lincoln Fonte: Raimundo Fontenele
26/12/2024 às 22h58 Atualizada em 26/12/2024 às 23h03
“MEMÓRIAS DOS MARES DO SUL” (Continuação do Capítulo I - No oco do mundo)
Poeta e escritor Raimundo Fontenele

Raimundo Fontenele.

 

Às vezes ia com minhas primas fazer compras de mantimentos ou no Conjunto Nacional ou no Conjunto Venâncio, naquela época, 1976, os principais centros comerciais do Distrito Federal.

O que fazer nos domingos e feriados numa cidade sem praças, sem esquinas e seus barzinhos? Eu não sabia que os barzinhos e os chamados points jovens existiam ali mesmo no térreo das superquadras.

Mas a classe média tinha seus lugares de lazer: os clubes sociais com piscinas e restaurantes, onde se podia passar um dia menos tedioso do que simplesmente ficar andando ao léu nas áreas verdes, gramadas, ou nas vermelhas do piçarral do Planalto Central.

Essa foi a ideia. Está no Google.

“Idealizados no projeto original de Lúcio Costa para a cidade, clubes mantém tradição de levar esporte e lazer para perto de casa aos moradores do Plano Piloto.

A ideia de Lúcio Costa era elogiada por arquitetos e urbanistas: ele queria que Brasília tivesse quatro superquadras, na Asa Norte e na Asa Sul, com unidades de vizinhança, compostas por clubes, igrejas, cinemas e escolas. Foi assim que a capital viu nascer os clubes Vizinhança. O primeiro começou a ser construído com o Distrito Federal e inaugurado em 1961, por um grupo de 107 moradores da 108/109 Sul.

O clube tem todas as opções que uma associação grande tem, mas é do lado da nossa casa. O nome faz jus ao que ele é, pois é realmente um local da vizinhança. Todo mundo se conhece, mora por perto.”

Então, a princípio, os clubes se chamavam clubes da Vizinhança, tinha o da Asa Sul e o da Asa Norte; em razão do Lago Paranoá fundou-se também o Iate Clube, mas não lembro mais o nome do Clube do qual a Terezinha era sócia e que nós frequentávamos.

Ouvia falar num bairro chique, aliás essa palavra “bairro” não fazia sentido, porque saindo do Plano Piloto, a área central de Brasília, o que havia eram as cidades-satélites: Guará, Taguatinga, Ceilândia, Núcleo Bandeirante… Na verdade, no Núcleo Bandeirante foi onde foram construídas as primeiras residências de Brasília, casas e alojamentos destinados aos candangos, assim chamados os operários e trabalhadores diversos que ergueram no Planalto Central a Capital do Brasil, sonho acalentado desde o Brasil Colônia.

O bairro chique era o Lago Sul. Lá a plebe não ia, não tinha vez. As embaixadas, políticos safados e corruptos do nordeste tinham lá suas mansões. Durante minha breve estadia em Brasília fiz questão de não conhecer aquele local, paraíso de playboys. Dois deles, filhos do ex-Ministro da Justiça Alfredo Buzaid e do então senador Eduardo Rezende estiveram envolvidos no escabroso caso do sequestro, estupro e assassinato da menina Ana Lídia, de apenas 7 anos de idade, além de Raimundo Lacerda Duque, 30 anos, funcionário público, que trabalhava com a mãe da menina, e do próprio irmão da garota Álvaro Henrique Braga, de 18 anos. Estes dois últimos, segundo o inquérito policial, foram os responsáveis pelo bárbaro assassínio.  

 O certo é que o crime ficou impune, como tantos outros no Brasil em que ou o dinheiro dos ricos ou o poder dos poderosos deixa tudo envolto numa nuvem de mistério e de segredo e a impunidade e a injustiça são as grandes vencedoras.

Eu passava ao largo dos acontecimentos políticos-estudantis, embora ali na UnB as coisas fervilhassem. Muitas vezes, após o expediente da tarde, já anoitecendo, eu costumava entrar num auditório onde se reunia o pessoal de alguns diretórios de estudantes, os do cursos de humanas, principalmente.

Sentava e fica vendo e ouvindo os militantes descerem o cacete nos militares, na ditadura, e coisa e tal, que o negócio era implantarem logo o comunismo no Brasil, até o dia em que um pelotão do exército entrou lá e aí desceu o cacete de verdade na molecada estudantil, levando alguns líderes presos.

Um milico veio falar comigo e eu fui logo de cara-crachá pra cima dele, provando que eu não era estudante e sim funcionário da UnB, lotado no Departamento de Engenharia, cujo chefe era um coronel que gostava de ouvir os relatos que eu fazia do que presenciava no Auditório. Porém eu ia mesmo era por causa dos momentos artísticos, uma vez que eu como poeta me interessava pelos momentos culturais que ali aconteciam.

O sargento que me abordou disse que era melhor eu me pirulitar dali, senão uma hora dessas eu ia acabar no camburão, que a ordem era levar todos que estivessem participando daqueles atos promovidos por uma “cambada de subversivos”. Ele falou assim mesmo “cambada de subversivos”. Foi a terceira e última vez que eu ali entrei.

Numa quinta feira, na hora do almoço, em que eu adentrava o restaurante do Tribunal de Contas,  dou de cara com o poeta Fernando Braga. Foi uma imensa alegria encontrar aquele poeta que conheci ainda jovem numa das noitadas na residência do escritor Erasmo Dias, na Rua do Apicum, na nossa São Luís.

Ao nos despedirmos ele me passou seu endereço e convidou-me para um almoço em sua casa no sábado vindouro.

Pois mal chegou o sábado, eu estava rente que nem pão quente na casa do Fernando, que me recebeu entusiasticamente. Conversa daqui, conversa dali, quando dei por mim estava com um copo de cerveja na mão, isso ia contra minha decisão de não beber que eu adotara ao sair de São Luís, e que vinha cumprindo há mais de quatro meses.

Após o almoço continuamos a beber e a conversar sobre poesia e literatura em geral, satisfeitos e alegres por estarmos juntos, éramos amigos de fato, tínhamos muito o que falar e recordar, o certo é que não lembro como saí de lá.

A única coisa que lembro é que ao chegar na casa da Terezinha eu estava mais bêbado que um gambá, tropeçando nas próprias pernas e chamando urubu de meu louro.

A Maria Rita veio em meu socorro e abriu a porta para que eu entrasse, pois nem conseguir acertar o buraco da fechadura eu conseguia.

Ao acordar domingo de manhã, na mesa do café com a cara de ressaca, vi logo que a Terezinha estava com a cara fechada, não puxou nenhum assunto e só não tomamos o café em completo silêncio porque a Maria Rita, pra piorar meu arrependimento e depressão saiu-se com esta:

­— Tu sabia, primo, que cu de bêbado não tem dono? ­— disse isso com um sorrisinho sarcástico e maroto a um só tempo.

­— Isso são modos de falar, Maria Rita? ­— interveio a Terezinha, levantando-se e se retirando da mesa.

A Maria Rita continuou enchendo o saco e pegando no meu pé:

­— Ih, primo, a Terezinha está uma fera contigo. Até falou que não quer nenhum cu de cachaça morando aqui na nossa casa.

Nisso a Terezinha saiu do quarto com sua sacola de mão para irmos ao Clube como fazíamos todos os domingos.

­—  Vamos, Maria Rita, te apressa ­— ela falou já dirigindo-se à garagem pra tirar o carro e voltando-se pra mim perguntou:

­— E tu, Fontenele, não vais conosco? ­— mas a tradução do que ela falou, era: “fica aí curando essa ressaca e vê se não apronta mais uma!”

Respondi que não estava me sentindo bem e preferia ficar em casa. Voltei pra cama e só levantei lá pelas três da tarde, hora que minhas primas estavam chegando do clube. A Terezinha trouxera meu almoço: arroz, galinha ao molho pardo, macarrão, batata frita, salada de alface, tomate, pepino. Ataquei aquele rango e comi feito um bispo.

A ressaca tinha ido embora, meu bom humor voltara e eu pedi desculpas à Terezinha pelo acontecido, prometendo que não ia repetir a dose novamente. Tudo voltou às boas, ficamos em paz e aproveitamos o restante do domingo conversando e vendo TV.

(CONTINUA NA PRÓXIMA QUINTA-FEIRA COM A MINHA DEMISSÃO DA UnB E ENTRADA NO CORREIO BRAZILIENSE)

 

 

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JaimeHá 3 semanas BSB/DFEssa crônica os mais jovens deveriam ler.
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