Matéria produzida pelo corpo editorial da Plataforma do Facetubes ( www.facetubes.com.br )
Marcelo Rubens Paiva publicou “Feliz Ano Velho” em 1982 (Editora Brasiliense), e, naquele momento, o Brasil vivia um período de transição política e efervescência cultural. O livro, no entanto, transcende épocas: relata o mergulho de um jovem de vinte anos que, por um infortúnio quase inacreditável, perde os movimentos do corpo e se vê, de um dia para o outro, confrontado com a paraplegia. A tragédia que poderia significar o fim de uma vida plena se transforma, aos poucos, em oportunidade de redescobrir o que realmente sustenta a esperança e a vontade de continuar.
O relato surge como uma crônica real e urgente. Paiva rememora, com irreverência, aquele fatídico mergulho numa lagoa rasa. A franqueza de suas palavras se assemelha aos testemunhos que encontramos em “The Wounded Storyteller” (University of Chicago Press, 1995), do sociólogo Arthur W. Frank, que descreve como, diante de uma crise de saúde súbita, o ser humano passa a reescrever seu próprio roteiro de vida.
Já o psicólogo Viktor E. Frankl, em “Em Busca de Sentido” (Editora Vozes, 1989), reforça a conclusão de que, diante de um sofrimento que não podemos evitar, o sentido da existência precisa ser construído, não evitado. É essa construção que vemos em “Feliz Ano Velho”: uma tentativa de reencontrar a força interior, mesmo que a realidade pareça irredutivelmente transformada.
Muitos leitores se perguntam: o que acontece quando, numa manhã de Ano Novo, a vida cobra seu preço abruptamente e muda tudo de lugar? Como reencontrar a luz que, até então, parecia natural? A narrativa de Marcelo Rubens Paiva não oferece fórmulas prontas, mas escancara a determinação de quem descobre que cada pequeno avanço — uma sensação nova num membro paralisado, um gesto mínimo de independência — pode reavivar a centelha da esperança. A luta passa a ser para reaprender a viver em novos tempos, e, muitas vezes, a família, os amigos e a própria força (boa) vontade tornam-se molas propulsoras de uma readaptação possível.
O valor filosófico do livro se mostra em muitos momentos. Um deles é quando o autor pergunta: “quem sou eu quando perco o controle sobre meu corpo?” Essa questão remete à tradição existencialista de Jean-Paul Sartre, que via no enfrentamento dos infortúnios uma oportunidade de afirmação do ser.
Por outro lado, há um sentimento de “absurdo” que aproxima a obra do pensamento de Albert Camus: o acidente revela uma aleatoriedade cruel do destino, mas, paradoxalmente, essa mesma consciência do “absurdo” pode nutrir uma vontade de viver ainda mais intensa.
Uma lição para aqueles que, neste exato momento, talvez estejam parados diante de uma cama de hospital ou em uma cadeira de rodas, com o coração tomado pela incerteza. Mas, não basta apenas esperar que tudo volte a ser como antes. É preciso, primeiramente, aceitar a condição para, em seguida, se reconstruir. Desta forma, o livro de Paiva encoraja quem lê (em quaisquer sejam as situações), a mergulhar na própria história com coragem e, se necessário, reformular cada ambição e cada sonho. A readaptação pode ser amarga, mas a possibilidade de enxergar novos horizontes, ainda que limitadas no começo, reacende a vontade de experimentar, de rir, de sentir — e de ser, afinal, protagonista de si mesmo.
Há um elemento de “boa vontade” kantiana aqui, quando exatamente a consciência de que, mesmo em desvantagens, há um dever para consigo e para com o mundo de persistir em existir, de não se deixar abater pela simples ausência de soluções fáceis. E, quando tudo parece sombrio, lembre-se do que diz Viktor Frankl sobre o poder de decidir a atitude diante das situações adversárias: “se não podemos mudar o que nos aconteceu, ainda podemos escolher como interpretar e lidar com esse fato”. São essas chaves de pensamento que transformam tragédias pessoais em vivências cheias de sentido e dignidade.
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