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De Eloy Melonio, a cronica “A fila e o Oasis”. 

Eloy Melonio é convidado da Plataforma do Facetubes (www.facetubes.com.br).

Mhario Lincoln
Por: Mhario Lincoln Fonte: Eloy Melonio
24/01/2025 às 19h46 Atualizada em 31/01/2025 às 14h59
De Eloy Melonio, a cronica “A fila e o Oasis”. 
Eloy Melonio, poeta e escritor maranhense.

*Eloy Melonio

Seria exagero comparar a fila do banco a uma caravana no deserto?

Talvez. Na minha concepção, a fila está para uma caravana assim como o interior do banco está para um oásis.

O sol abrasador e a lentidão dos camelos fazem do beduíno um viajante resistente e paciente. Seu maior desafio é vencer-se a si mesmo.

Sem nada disso na cabeça, saio de casa num dia qualquer para ir ao banco. Mas não passa pela minha cabeça que vou enfrentar uma “boa” fila. Admirado com a afluência de tanta gente, decido registrar essa movimentação como se escrevesse num diário.

Entro na fila às 9h10.

9h13. A rua é, basicamente, o cenário desta aventura. Sou o último da fila e, à minha frente, uma galera de não dar inveja a ninguém. Saúdo o sol e aguardo o sinal verde. Tento não me afetar com o calor que já está me incomodando.

9h15. Chega o meu segundo vizinho, um senhor de uns setenta anos. Dou-lhe bom dia, e ele só me olha. Outros dois acabam de chegar.

9h25. Pego uma nesguinha da sombra de uma amendoeira e aproveito para respirar e avaliar minha chance de chegar ao oásis. Não sou um beduíno, mas...

9h40. À minha frente, a fila se mexe e eu avanço uns cinco passos. A porta do banco ainda é um mistério que escapa à minha percepção.

10h05. Passo a passo, a fila vai virando uma confraria. Novos amigos se tornam velhos amigos. Gente falando alto, gente reclamando. Falam de tudo: da família, da pandemia, de um artista antipático.

10h10. A amendoeira agora é sombra do passado. O sol nos encara como se fôssemos camelos no deserto. Um ambulante me oferece lanche e água mineral. Penso na covid-19 e agradeço.

10h20. A cabeça quente de (quase) todo mundo faz da fila uma arena política. Falam dos deputados e senadores, dos ministros do STF. E até de um dos filhos do presidente. Um senhor espirituoso se mete na conversa: “No meu tempo, ‘rachadinha’ era outra coisa".

10h27. Um grupo de indignados se mobiliza para entrar com uma representação contra o banco. Anotam nomes e telefones. “Onde já se viu!”, questiona uma aposentada do INSS. “Largar a gente aqui sem nenhuma assistência. Logo eles, que mais têm lucro neste país. No mínimo, deveriam distribuir água e café”.

10h38. Não sei se o que vejo agora é a frente do banco ou uma feira popular. Fileiros se agitam como se comemorassem um gol do Neymar contra a Argentina. Outros se prestam a vigiar a porta de entrada. “Na minha frente não entra ninguém”, grita um senhor com cara de policial.

10h45. O calor aperta o cerco. Sinto vontade de tirar a camisa e a máscara. E uma ideia me persegue: Sobreviverei ao cansaço e à sede? Para aumentar meu desespero, alguém grita lá atrás: "Essa fila não anda, não?"

10h50. Enquanto faço as contas (quase duas horas em pé), a fila anda. Ou melhor, mexe-se. Atrapalhado, meu vizinho quase me atropela. Olho para trás, e ele se faz de desentendido.

11h10. O sol tinindo sobre o meu rosto. Fileiro de primeira viagem, não trouxe boné nem guarda-chuva. Sinto na pele a utilidade dos lenços.

11h17. Nuvens mal-encaradas ameaçam a estabilidade da fila. Um poste já me salvou do sol, mas não me salvará da chuva.

11h30. Imagino Neguinho da Beija-flor dando a voz de sua graça por aqui: “Olha a chuva aí, gente!” Obediente, ela despenca. E todo mundo corre à procura de um abrigo que não existe. Os dois orelhões de um velho telefone público parecem dançar lambada com alguns fileiros.

11h35. Acho uma brecha debaixo do guarda-sol do vendedor de água mineral, de quem já recusara uma garrafinha. A fila se desfaz, e a rua, literalmente, vira um deserto.

11h40. Uma preocupação incomoda os menos experientes: “E depois da chuva, como vai ficar a fila?”

11h50. A chuva vai saindo de fininho. Sem perder tempo, o sol reaparece, e a ordem se recompõe. “Tudo está no seu lugar”. "Graças a Deus!", murmura uma senhora com um Bíblia na mão. Avisto a porta de entrada do banco e renovo a ilusão do oásis.

11h53. Olho pra trás e conto as milhas que percorri, mesmo achando que não saía do lugar.

12h05. Na reta de chegada, recupero a coragem e me convenço de que, entre cansados e desanimados, sobreviveremos todos.

12h10. A esperança é a última que morre. Mesmo morrendo de sede, “ainda estou aqui”, vivinho da silva.

12h11. A funcionária do banco faz o sinal que esperei por (quase) exatas três horas. Mede minha temperatura e deixa-me entrar.

12h13. Passo pela porta giratória bem devagar, como se ela fosse só minha.

12h15. Estou dentro da agência. Exatamente como eu imaginava: um oásis de frescor.

12h17. Ufa! Não preciso mais ficar, como Sherazade, contando “os mil e um minutos” dessa minha jornada.

12h18. Agora é só café, só café. E água, que não sou camelo! Ah, sim, e também...

 

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eloy melonio é professor, escritor, poeta e letrista [revisada e adaptada da crônica escrita em julho de 2020]

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Rosemary LeitãoHá 2 semanas São LuísQue texto bom, professor Eloy! É ótimo. Ele fala sobre a fila que muitas pessoas têm que enfrentar no dia a dia. Às vezes para consultas ou não, marcação de consultas, pagamentos de contas de faturas, água, energia, Internet e telefone, comer, entrar em festas, entrar em algum lugar como cinema ou outros. O texto faz lembrar do jogar de futebol, o brasileiro Neymar Jr. que atualmente foi contrato para jogar no Santos até o mês de junho de 2025. E como sempre as boas palavras empregadas no texto.
Maura Luza Frazão Há 2 semanas São Luís - MaQue texto maravilhoso. Lindamente construído com o talento literário que é intrinsecamente parte da essência poética do nosso nobre Confrade Eloy Melônio. Meus aplausos querido poeta.
Emilia RosaHá 2 semanas São LuisParabéns Eloy, muito interessante, me transportei a cada fila que enfrentei, uma realidade vivida por cada um de nós.
Monica Puccinelli Há 3 semanas Curitiba PR-BR Nossa... a descrição foi tão verídica que senti calor, cansaço, ansiedade, mas não tive toda esta paciência voltei pra casa. Parabéns por ter alcançado seu oásis, amei viajar com você
Regis Furtado Há 3 semanas São Luís Fantástico. Parabéns Eloy Melônio
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