Ceres Costa Fernandes
Cardosinho era um marido de cabresto curto. O tempo todo ali amarrado junto a Dona Isaura, mulher miúda, de carnes duras e vontade férrea. Comandante-em-chefe, Isaura monitorava todos os horários do companheiro. O caminho repartição/casa era rigorosamente cronometrado: só o necessário para o trajeto, acrescido do tempo suficiente para passar na padaria da Rua do Passeio, comprar pão massa grossa e um pacote de bolachas folhadas. Nem um minuto a mais. Ah, vale dizer que o acontecido se passou na São Luís da metade do século passado, cidade pequena e de muro baixo.
Maridão, Cardosinho conformava-se. Amava Isaura, e o cabresto ia bem com seu temperamento pacato. Mas vejam, até os maridões têm tentações. E uma, inconfessável, por vezes voejava na mente de Cardosinho: ir, uma vezinha só que fosse, a um baile de máscaras. Um baile de segunda – conforme eram chamados – , onde a liberação era total. Logo, media a brabeza da mulher e a idéia murchava. E assim se passavam calmamente os anos de matrimônio.
Ora, o inferno está cheio de diabos e de seus emissários, e um desses veio na pessoa de Oscar, colega de sala e de profissão. O amigo chegou com a notícia fresquinha de um baile de máscaras, ali para os lados do Cemitério do Gavião cheio de mulheres liberadas, boazudas, desgarradas e devolutas. Rapaz, a Isaurinha faz picadinho do meu fígado e ainda come no sarrabulho, suava Cardosinho. Insidiosamente, como fazem os capetas, Oscar reforçava, Havia as vesperais, tipo "mamãe-vai-às-compras", em que os casados, homens e mulheres, podiam se esbaldar sem susto. O já seduzido suspirava, Ai meu Deus! Tentado só de pensar o quê de mistérios escondiam os fofões e dominós das mascaradas. E o sedutor, insistente, Dançar não tira pedaço. A gente aproveita o horário do expediente e tu chegas em casa religiosamente na hora de sempre e ainda levas as bolachinhas da Isaura, sem falha.
O detalhe das bolachinhas foi decisivo. Combinaram o horário. Das duas às seis, não mais. Oscar, prestativo como todo diabo, ainda traria um traje carnavalesco para ele se trocar, não fosse Isaurinha revistar suas roupas e descobrir os indícios da prevaricação, que para isso as mulheres ciumentas são mais eficientes que os médicos legistas da polícia.
Lembrando que a pecaminosa vesperal aconteceria não muito longe da sua casa, na Rua das Cajazeiras, Cardosinho teve um último esboço de reação, logo posto de lado: a cara-metade não saía de casa, a não ser para a missa de domingo e para as compras de sábado, sempre acompanhada por ele. Trela para vizinhos não era com ela, não gostava nem mesmo de ficar à janela. Dona de casa que se preza sempre tem ocupação, dizia enfática. Sobre isso tinha até uma máxima: “Mulher que se queixa de não ter o que fazer, vá arrumar suas gavetas". Então, estava limpo o cenário.
Mas Deus é justo e, para maior glória das esposas honestas, não existe crime perfeito. Sabemos, também, que o capiroto, para confundir, age em várias frentes, enviando emissários para rumos contrários, com o que não desmerece o nome de tinhoso. Em assim sendo, eis que passa em frente ao baile uma moradora das Cajazeiras, justo a maior fuxiqueira da redondeza, apropriadamente alcunhada de Desgracinha. Quem vejo?!! Seu Cardosinho, de fofão?!! Limpou os olhos duas vezes. Ele mesmo, o maridão da Dona Isaura, em ocupação feroz de apalpar uma oxigenada fornida (era chegado numas carnes), nem se deu conta da emissária do malino...
Desgracinha sente a veia novidadeira pulsar com violência. Um prato cheio! Dana-se a correr. Mal consegue conter a ansiedade de chegar a Cajazeiras e espalhar a notícia na redondeza. Súbito, estanca o passo e, suprema ousadia e requinte de fuxiqueira, decide superar a si mesma e dar a notícia à própria Dona Isaura! Mas como?! A mulher era uma onça! A veia pulsa com mais força, ah, desse no que desse, não perderia esse gozo. Entra porta adentro, encontra Isaura dando brilho numa jarra de metal. Sem dar o tempo de um ai, despeja a história toda. A reação não se faz esperar. E lá vão as duas, em direção ao baile, Dona Isaura marchando à frente, armada com uma tranca de janela, e Desgracinha atrás, aos pulinhos.
Cardosinho, ainda ocupado, só percebeu a presença da cara-metade quando o pau já lhe descia no lombo. Na correria em direção a casa, ele chega primeiro. Entra, desatinado e, no corredor, vê a escada que o pedreiro deixou encostada na abertura do forro. É a salvação, sobe num pulo, Isaura não teria coragem de fazer o mesmo. Ela, percebendo o golpe, rápida, retira a escada. Zaurinha, faz isso, não! Bota a escada para teu Dodozinho! Eu explico, minha rosquinha de coco, não é o que tu tá pensando! Foi pra ajudar o Oscar... A moça é prima dele, perdeu a mãe, Zaurinha, tô apertado, deixa eu descer! Desaperta aí mesmo, cabra safado, que tu não vais descer nunca mais!
De nada adiantaram as súplicas do infeliz, nem as dos vizinhos que Cotinha, a secretária doméstica, foi chamar a pedido dele. Cardosinho passou o resto da tarde e toda a noite no forro. No dia seguinte, já perto do almoço, Iolanda, uma vizinha muito religiosa, conseguiu que a amiga permitisse a descida do infiel. Cardosinho pagou caro a bobeada. Ninguém sabe ao certo qual foi o castigo, desconfia-se de vários. Mas uma coisa é certa: durante muito tempo o pacote de bolachas folhadas, trazidas religiosamente, todos os dias, ia fechado para o lixo, sob os olhares compridos de Cotinha. Mas, ai de quem ousasse...
Ora, eterno só Deus. Dia vai, dia vem, Isaura voltou a tomar o chá da noite com as bolachinhas folhadas. A vida conjugal retomou seu curso Mas, se no recinto do lar, Cardosinho acomodou-se a um cabresto ainda mais curto, no serviço tudo mudou. Oscar encarregou-se de divulgar o rompante de independência do amigo, omitindo, é claro, a tragicomédia do forro e da tranca. E Cardosinho, embora nunca mais tenha voltado a prevaricar, saiu da categoria dos ferrolhos e dos barrigas-brancas, passando a compor o grupo dos heróis do universo masculino, onde, estranhamente, ser flagrado pela legítima só lhes traz aumento de prestígio. Pensando bem, se vocês concordam, poderíamos mudar o título desta história para: O diabo não é tão feio quanto se pinta.