Ceres Costa Fernandes
Quando os soldados da Aliança do Norte tomaram Cabul, no Afeganistão, e expulsaram os partidários do Taliban, o mundo ocidental viu pela telinha a patuléia masculina afegã dançando nas ruas ao som das músicas dantes proibidas, raspando as suarentas barbas e fazendo fila para comprar fotos das atrizes egípcias ( não entendi bem porque só das egípcias), assistidos ao longe por embuçadas mulheres. Uma que outra ousava dar demonstrações de alegria, mas a grande maioria resistia até mesmo à retirada da burca. Especularam-se as razões, que podiam ir do desconfiado temor do retorno do opressor ao puro e simples apego ao hábito.
Pergunta-se como pode alguém se acostumar ao martírio? Aí está. Lembro do caso de uma menina encontrada em cativeiro doméstico, aqui mesmo na Ilha, que era acorrentada pela própria mãe a um botijão de gás quando da saída desta para o trabalho. Denunciado pelos vizinhos, o cativeiro foi invadido pela polícia e a menina libertada. Solta das amarras, retirada da posição degradante, a pobre de Deus teve, pela primeira vez, escolha de onde estar assente. E nesse primeiro momento livre, que faz a criança? Pula, corre, vai ao quintal, à porta da rua? Não. Ela volta a ajoelhar-se junto ao botijão, olha para seus libertadores e docilmente estende os pulsos para receber novamente a corrente. Será a liberdade apenas um hábito?
Remexo esses acontecidos enquanto caminho pelas calçadas do Reviver nesta noite fresca de fim de novembro. Vou a dois lançamentos de livros. Livros escritos por mulheres. Coincidentemente, ambos sendo lançados neste Dia Nacional de Resistência à Violência Contra a Mulher.
São duas as escritoras. Uma é feminista, pesquisadora das questões de gênero; outra é poeta, perscrutadora das razões do sentimento. Ambas pertencem àquela categoria de mulheres apaixonadas que abrem caminhos com a delicadeza forte que não recua com o ferir da própria carne. As mulheres: Mary Ferreira e Laura Amélia Damous. Os livros Os poderes e os saberes das mulheres: a construção do gênero e Cimitarra.
As burcas, Laura, Mary, poemas de amor, questões de gênero, os Talibans, eu, andando sozinha em meio a barzinhos em plena noite de segunda-feira. Tudo são flashes que espoucam, acendem e apagam, transportando-me para a São Luís dos anos 60.
A máquina do tempo sobrepaira as ruas da cidade que não é mais. Num átimo, reconheço templos, clubes, praças, cinemas desse passado tão recente. A visão - claro - é em cinemascope. Sou onisciente e onipresente como o triangular olho de Deus pintado nas igrejas. Observo as mulheres. Aquelas ali vestem saias midi, anáguas, cintura apertada, pouca ou nenhuma maquiagem, olhos baixos, estão acompanhadas, parece que da sogra, da cunhada ou de uma tia mais velha. Aquelas outras, curiosamente, vêm em bandos, risonhas, de calças compridas, olhos pintados, falando alto. Súbito acordo para a diferença: as primeiras são senhoras casadas e as outras moças solteiras.
Uma invisível burca cobria as casadas desta Ilha. Sim senhores, o Afeganistão já foi aqui. No começo da década da revolução sexual as mulheres casadas de São Luís não podiam cursar faculdades, dirigir automóveis, sair sozinhas, usar calças compridas, ter um emprego público (a não ser de professora, se já exercesse o magistério antes do casamento), rir e conversar com homens sem a presença do marido. Paro aqui, a lista seria longa e enfadonha para quem não a viveu.
. Hippies parados no tempo abordam-me, tirando-me do devaneio na tentativa de vender-me bugigangas. Será que não retornei? A calçada iluminada do complexo cultural Odylo Costa, filho, desfaz-me as dúvidas. Cumprimento amigos com um largo sorriso. Como é bom sorrir. Nos locais dos eventos encontro várias amigas (bem) casadas, acompanhadas ou não dos maridos, curtindo papos literários com homens e mulheres. Conversam descontraídas, riem, que a noite é de alegria.
O carro desliza suavemente na estrada de volta a casa. Abro a janela para sentir o ar da noite no meu rosto Penso em Laura Amélia, Laurinha, quando a conheci nos seus dezessete anos. Laura poeta. Laura apaixonada. Laura arrostando preconceitos. Laura, sempre em busca do verbo, seguindo seu caminho iluminado de luas por vezes transmudadas em "cimitarras afiadas a decepar a noite". Laura menina que inda hoje diz: '"Não importa que esse boi se canse/ Ficará brincando nos meus olhos/ Sempre..
E penso novamente em Mary, de alcunha Mary Mulher, feminista de primeira água, panfletária sem medo da pecha, trabalhando também o achamento da palavra, que empresta a outras mulheres. Nessa lida, penetra em quilombos, campos e cocais espalhando consciência e recolhendo palavras de quem, com as feministas, aprendeu a falar. Como a trabalhadora rural Joana, poeta e analfabeta. Ouçam-na: "Mas eu num tinha coragem de falar. Depois da luta é que comecei a fazer poesia. No tempo d´eu jovem nunca experimentei."
Ergo o queixo, a cara limpa e o véu levantado, em saudação a Mary e Laura e a outras mulheres assim.
As mãos em cruz a oferecerem-se às correntes? Nunca mais!