Edmilson Sanches
--- Das razões (que se conhece) das críticas ácidas a um dos livros do ex-presidente da República
FOTOS: Os livros de Millôr Fernandes e José Sarney. Os presidentes Fernando Henrique Cardoso e José Sarney. Os escritores Barros Alves e Edmilson Sanches, na Academia Cearense de Letras (Fortaleza).
***
Em grupo de bibliófilos no WhatsApp, perguntam-me:
“Mestre @EDMILSON SANCHES, você conhece essa obra do Millôr Fernandes? Sabe alguma informação a respeito do motivo do azedume dos textos nela contidos?”
A “obra do Millôr Fernandes” é o livro “Crítica da Razão Impura ou O Primado da Ignorância -- Sobre ‘Brejal dos Guajas’, de José Sarney, e ‘Dependência e Desenvolvimento na América Latina’, de Fernando Henrique Cardoso”. Esse livro do Millôr -- com título parodiado de "Crítica da Razão Pura", do filósofo iluminista alemão Immanuel Kant (1724-1804) -- foi publicado em maio de 2002 pela L&PM Editores, de Porto Alegre (RS).
E quem quer saber, autor da pergunta, é o escritor Francisco Barros Alves (ou só Barros Alves, como o mundo o conhece), autor de várias obras, um notável intelectual cearense, bibliófilo de nomeada, leitor consistente e voraz de livros e jornais em vários idiomas, membro, entre outras entidades, da Associação Brasileira de Bibliófilos, Academia Brasileira de Hagiologia, Sociedade Cearense de Geografia e História, Academia Cearense de Literatura e Jornalismo e Academia Cearense de Retórica.
Sobre o "Leitmotiv" da crítica milloriana acerca da obra "Brejal dos Guajas e Outras Histórias", do advogado, político e escritor maranhense José Sarney, lançada em 1985, arrisco que, no seu dizer, o “azedume” do conhecido cartunista, humorista, jornalista, tradutor, escritor e dramaturgo carioca Millôr Fernandes (1923-2012) tem a ver com a muito citada -- e de autoria nunca assumida -- frase “¿Hay gobierno? ¡Soy contra!”
Essa expressão, dita e tida como anarquista e de ainda não comprovada origem mexicana, resume ou revela o que também pode esperar aqueles que assumem posto de mando político, em especial a função pública máxima em um país havido como democrático -- a presidência da República.
Assim, tendo chegado à presidência por intrincados problemas que envolveram desde a doença e morte de quem foi eleito (por um Colégio Eleitoral) até as tratativas e/ou negociações políticas, o jogo do poder, as sessões realizadas e as concessões solicitadas etc. etc., era natural que o governo Sarney, como todo governo, e o percurso político, pessoal, cultural do próprio José Sarney ficassem sob poderosas lupas, que tanto são capazes de alcançar detalhes microscópicos quanto ampliar o que for conveniente aos olhos e mentes do observador.
Em especial, adicione-se a esse ambiente ou conjunto de situações políticas, o fato de que José Sarney ser escritor com já nove títulos publicados até 1985, ano em que teve início os seis de seu governo, de 1985 a 1990. Dá-se que, no ano de sua posse, 1985, Sarney tem lançado “Brejal dos Guajas e Outras Histórias”. Ora, para quem conhece a verve de intelectuais, humoristas e críticos que nem Millôr Fernandes e -- outros críticos de Sarney --, Paulo Francis (1930—1997; jornalista, escritor e teatrólogo carioca) e Franklin de Oliveira (1916-2000; jornalista, escritor e crítico literário maranhense), um presidente escritor é matéria ou material (ele e que ele tiver escrito e dito) para análise permanente e as possíveis críticas que daí advirem.
Junte-se a essa multifária condição para ser alvo de críticas a sabida má vontade, desvontade ou, vá lá, pouca boa vontade de gentes (poucas, mas as há) do Sul e Sudeste em relação a nós outros do Norte e Nordeste -- “¿Hay nordestino? ¡Soy contra!” Em favor de Millôr (que não precisa de favores), diga-se o óbvio: que no seu livro ele é crítico -- cítrico -- tanto do nordestino Sarney quanto do seu conterrâneo fluminense e carioca Fernando Henrique Cardoso oito anos mais moço (FHC é de 1931).
Mas, saindo de campo daquilo que eu acho, passemos às motivações -- documentadas -- do “azedume” de Millôr contra o livro de Sarney:
----- A PEDIDO: Millôr Fernandes ele mesmo já havia dito que sua série de onze textos sobre o “Brejal” de Sarney, publicada em janeiro de 1988 no “Jornal do Brasil”, atendeu a pedidos de amigos para analisar a obra. O momento era adequado: “Brejal” foi lançado no ano em que seu autor era empossado (ou empoçado, pois a presidência também pode ser tanto poço, profuuuuuundo, quanto poça, de lama).
----- POR SE SENTIR “ENGANADO”: Millôr escreve, logo na primeira das onze “partes” da série “Sarney e o Brejal dos Guajas”, que mais uma vez fora “enganado”. Escreve Millôr: “E enganado em literatura, por gente da melhor qualidade pra julgar literatura, como João Gaspar Simões, Jorge Amado, Carlos Castello Branco, Josué Montello, Luci Teixeira, Antônio Alçada Baptista, Lago Burnett. E (...) pelo mais preparado de todos pra tarefa específica (...), o crítico literário Leo Gilson (...)’.” Todos esses “luminares do pensamento” (a expressão é de Millôr) escreveram ótimos comentários sobre “Brejal dos Guajas”. Aí Millôr sentiu vontade de confirmar essa unanimidade de crítica ou apreciação favorável. Mas da vontade à ação ainda levaria um tempinho (veja-se: o livro é de 1985; a série crítica de Millôr, de janeiro de 1988). E o que o fez passar do molho ao malho? Veja a seguir.
----- “BRASILEIRAS E BRASILEIROS”: Foi o bordão com que Sarney iniciava suas falas (“Brasileiras e brasileiros”) o que disparou o gatilho da desconfiança de Millôr em relação à qualidade do livro tão elogiado por gentes de altíssimo nível literário e de crítica literária. Conta Millôr: “Só fui desconfiar, apavorado com o complô, na primeira vez em que ouvi Sir Ney usar o apelativo rastaquera, ‘Brasileiras e brasileiros’, fazendo média contraproducente (por ridícula) com o feminismo.” Pronto! Parecia não faltar mais nada para iniciar a dissecação anatômico-patológico-literária de “Brejal dos Guajas”. Parecia... Millôr diz que a gota d’água viria mais tarde. Veja a seguir.
----- “CORRUPÇÃO”: Millôr Fernandes escreveu que passou mesmo a escrever sua série de críticas após saber das tratativas políticas do Governo Sarney para, em resumo, trocar concessões de rádios e TVs por apoio político do Congresso Nacional ao seu Governo, aí incluída a extensão de mais um ano de mandato para Sarney. Eis as palavras de Millôr: “Não
escrevi imediatamente sobre o livro por uma questão de... piedade. Mas agora, depois da jogada de gigantesca corrupção em que, como medíocre ditador, troca esperança de 140 milhões de brasileiras e brasileiros por mais um ano de sua gloríola regada a jerimum, começo uma pequena análise dessa ópera de 50 páginas.”
Millôr, na “Parte II” da série de textos críticos, reitera que o livro tem 50 páginas: “’Brejal dos Guajas’ só pode ser considerado um livro porque, na definição da Unesco, livro ‘é uma publicação impressa não periódica com um mínimo de 49 páginas’. O ‘Brejal’ tem 50.” Neste ponto Millôr estava sendo mais humorista que realista, mais galhofeiro que verdadeiro. (“Galhofeiro” é como Millôr foi definido por seus editores.)
A editora Alhambra (Rio de Janeiro), que publicou “Brejal” em 1985 diz que a obra tem 87 páginas, formato 14 cm (largura) por 21 cm (altura).
Nesse recorte sobre quantidade de páginas, é evidente que um livro terá as características, dimensões, que seu projeto gráfico definir. Autores escrevem textos; editores, diagramadores, gráficos fazem livros, a partir de um projeto e dos custos.
Por exemplo, um texto que, continuamente, impresso frente e verso, não chegaria a quarenta páginas, pode se transformar em um livro de cem páginas ou mais. Como?! Basta definir um corpo maior da fonte (o tamanho das letras); adotar uma mancha gráfica (área de impressão) menor; aumentar os espaços interliterais, intervocabulares, interlineares, interparagráficos (entre letras, palavras, linhas e parágrafos); imprimir texto apenas em um lado da folha (geralmente a face ímpar) e, na página oposta, par, colocar ilustração ou destacar uma frase em moldura ou mesmo deixar em branco; incluir no livro caderno iconográfico, com imagens relacionadas ao texto; incluir índices (onomástico, cronológico, geral), notas de pé de página, de fim de capítulo ou notas finais; e mais páginas editoriais (folhas de guarda, falsa folha de rosto, folha de rosto, créditos editoriais, epígrafe, agradecimentos, sumário, prefácio, apresentação, introdução, páginas capitulares (folhas com apenas a numeração de capítulos ou das partes em só uma das faces), biografia do autor, colofão, orelhas etc. Um livro não é um texto autoral; é um projeto editorial.
É possível transformar facilmente os Dez Mandamentos, ou uma oração religiosa em um livro com mais de cinquenta páginas.
*
Espero que algo neste arrazoado -- desmesurado -- possa ser útil ao questionamento do amigo e confrade Barros Alves.
******
EDMILSON SANCHES
[email protected]
www.edmilson-sanches.webnode.page
Administração - Biografias - Comunicação - Desenvolvimento - História – Literatura // PALESTRAS - CURSOS - CONSULTORIA