Editoria de Arte e Literatura do Facetubes
Franz Kafka carregava nos bolsos duas chaves que abrem a mesma porta: a do espanto diante de um mundo onde todos vestem disfarces, e a da vergonha de ousar cruzar o salão sem máscara. O fragmento que inspira esta reflexão ― “Tive vergonha de mim mesmo quando percebi que a vida é uma festa de máscaras e participei com meu verdadeiro rosto” ― explicita aquilo que em A Metamorfose se tornará corpo: a catástrofe de ser autêntico num espaço regido por convenções opacas. O jovem Gregor Samsa desperta transformado em algo que ninguém quer nomear; já nós, leitores, acordamos transformados em testemunhas de nossa própria relutância em mostrar quem somos.
A metáfora das máscaras resume o drama kafkiano da identidade. Vivemos cercados por rostos que escondem intenções, sorrisos que disfarçam dores, palavras que cedem apenas migalhas de verdade. Quando, por ingenuidade ou coragem, retiramos a máscara, sentimos o frio do salão: corremos o risco de ser incompreendidos, feridos, rejeitados. Nesse contraste nasce a vergonha ― sentimento que Kafka conhecia com precisão clínica e moral, como se as páginas de seus diários fossem espelhos desconfortáveis.
No entanto, a vergonha não é fraqueza, mas força em gestação. Desfilar com o rosto descoberto é um protesto silencioso contra a hipocrisia: recorda ao mundo que a autenticidade, mesmo solitária, emite uma luminosidade que máscara alguma reproduz. Por isso, a cena imaginada pelo narrador acima ecoa o clímax de A Metamorfose: Gregor, já abatido, arrasta-se para fora do quarto quando ouve a irmã tocar violino. Ele anseia por um momento de comunhão genuína ― e, ao fazê-lo, expõe a própria nudez existencial.
Poucos críticos entenderam tão bem essa nudez quanto Vladimir Nabokov. Na famosa aula que ministrou em Cornell, chamou Kafka de “o maior escritor alemão do nosso tempo”, reduzindo gênios como Rilke e Thomas Mann a “anões ou santos de plástico” diante dele. Ao mesmo tempo, repeliu as leituras puramente alegóricas: “Interesso-me por insetos, não por imposturas espirituais”, advertiu, insistindo que a história deve ser lida antes como arte e só depois como metáfora.
A observação de Nabokov não descarta a crítica social, mas lembra que o choque estético se impõe antes do moral. Kafka proíbe que desenhemos o “inseto” justamente para preservar o desalinho: quer que encaremos a metamorfose como “unheheueres Ungeziefer”, (um enorme inseto imundo), um ser impuro que não cabe em nenhuma categoria conhecida. A indefinição é a própria mensagem: quem insiste em mostrar o rosto verdadeiro torna-se intraduzível, perturba o vocabulário comum, ameaça a dança das aparências.
Ler o trecho inicial desta crônica, portanto, é reabrir a ferida que Kafka nunca deixou cicatrizar. Ele nos obriga a perguntar: quantas vezes cedemos à festa de máscaras? Quantas palavras escolhemos só para evitar o silêncio constrangedor que se instala quando alguém ainda acredita na franqueza? A vergonha que o narrador confessa não é mero lamento, mas clarão epifânico: ele compreende que participar com o rosto nu é reivindicar o direito de ser mal-compreendido, talvez até de ser esmagado ― mas ao menos por aquilo que realmente é.
Destarte, este “Kafka que ninguém lhe havia apresentado” não está preso à iconografia do escritor pálido e atormentado: é o filósofo da coragem íntima, que denuncia a gaiola social sem abdicar da ternura pelo indivíduo que, mesmo esmagado, teima em chamar a irmã, pedir compreensão, oferecer algo de si. Cada vez que recitamos seu verso sobre máscaras, repetimos o gesto de Gregor ao avançar pelo corredor: compromete-mo-nos com o risco de sermos vistos ― e, quem sabe, de ver os outros.