SOCORRO GUTERRES, indicada para a Academia Poética Brasileira
Eu os convido a visitar (ou revisitar) o romance regionalista da década de trinta e que se estende ainda aos dias de hoje, posto que atualíssimo na literatura de José Lins do Rego. Nascido a 3 de março de 1901, no Engenho Corredor, em Pilar, o escritor paraibano deixou-nos o legado de um romance moderno, numa escritura simples e profunda, em grande parte memorialista e marcada pelo tom de oralidade, como se estivesse em conversa direta com o leitor. Originário de uma família latifundiária, cuja situação patriarcal de senhores de engenho na produção da cana-de-açúcar (primeira riqueza agrícola nacional), poderia ter lhe proporcionado um outro destino, José Lins, contudo, se deslocou dessa posição privilegiada para uma perspectiva crítica da sociedade em que vivia, retratando-a numa literatura política e poética.
Formou-se em Direito na Faculdade de Recife e, posteriormente já reconhecido por seus livros, de um modo geral muito bem recebidos, residiu no Rio de Janeiro onde escrevia para grandes jornais da época, Inclusive crônicas esportivas, tornando-se fervoroso torcedor do Flamengo, time do coração que mesmo após o seu ingresso como Membro da Academia Brasileira de Letras não o impediu de se mostrar como torcedor nas arquibancadas, ao lado de desempregados e favelados. José Lins não era elitista e o futebol, como uma fuga das tristezas diárias, era o bálsamo do povo, e assim ele foi “Flamengo até morrer” de cirrose hepática, embora nunca tenha ingerido bebida alcoólica em sua vida notoriamente boêmia nas cenas artísticas e literárias recifense e carioca.
Para percorrermos alguns aspectos da extensa obra de José Lins do Rego, atento para as semelhanças com o escritor norte-americano William Faulkner, ainda que em contextos culturais diferentes, pois o escritor brasileiro apresenta um teor mais direto, mais narrativo, na exposição da passagem dos engenhos para as usinas, e Faulkner mostra o impacto da guerra civil nos Estados Unidos da América. Em ambos encontra-se o traço modernista do fluxo de consciência, o declínio de estruturas sociais e culturais, bem como a complexidade das relações humanas.
Não vou exaurir a apreciação da literatura de José Lins nestas breves perspectivas, mas revisitar, conforme já relatei, algumas de suas principais escrituras que poderíamos dividir em três fases: o Ciclo da cana-de-açúcar; o Ciclo do Cangaço e as Obras Independentes. No primeiro ciclo, exemplificando, constariam títulos como Menino de Engenho, Doidinho e Fogo Morto.
No segundo ciclo, Pedra Bonita e Cangaceiros e no terceiro, minha pessoal afeição está em Pureza e Riacho Doce, este último com o protagonismo feminino. Entretanto, confesso meu entusiasmo e admiração por duas obras consideradas as mais importantes: Menino de Engenho, publicado em 1932 e Fogo Morto, em 1943, como a completude de um ciclo que se inicia na infância do narrador no engenho até a falência desse local, com seu Fogo Morto, no apagar das chamas de um lugar já improdutivo. Fico assim, para explanar em maior vagar, com a infância, início de tudo, na lírica saudade de Menino de Engenho.
O Regionalismo, corrente literária centrada em aspectos localistas, não se inicia na década de trinta, na verdade, é uma tendência que está dentro de vários movimentos literários, pois apresenta questionamentos que já aparecem desde o Romantismo com o intuito de diferenciar a literatura brasileira da portuguesa. Desse modo, Menino de Engenho, obra que conquistou o prêmio da Fundação Graça Aranha, inicia o registro do ciclo da cana-de-açúcar por José Lins do Rego e revela marcas que o ambiente rural da infância do autor legou à sua personalidade, expondo, por meio de um admirável contador de histórias da realidade nordestina brasileira, paisagens e pessoas, mas não se atendo a uma exclusividade regionalista, pois acima de tudo, apresenta a imagem universal do homem do povo, homem do mundo; unindo imaginário e memória em um romance fundamental para a moderna literatura brasileira.
Em Menino do Engenho o homem do interior aparece numa instância problematizada, em um regionalismo engajado, sem exotismo. Ressalta-se nessa narrativa a naturalidade com que são traçados os personagens, verdadeiros em seus defeitos e qualidades. Dentre eles destaca-se a figura do avô, José Paulino, patriarca símbolo de uma época, coronel do mato, dono de engenhos e de almas. Os colegas de infância, os animais, os serviçais da casa-grande, os banhos de rio e as águas frias das madrugadas (que parecem transbordar das páginas) documentam uma fase da história do país. Tampouco poderia estar ausente desse ambiente agreste o cangaço, o qual concretiza no imaginário do menino o que já era lenda: Antônio Silvino e seus 12 cabras. No enredo vão surgindo os indivíduos do sertão nordestino e José Lins do Rego os faz crescer em solo fértil como o massapê, sem necessidades de mezinhas estilísticas.
A espontaneidade com que o autor descreve o cotidiano em memórias verídicas ou imaginárias não chega a ser "um mergulho proustiano", mas descreve as tensões políticas, econômicas e sociais, estendendo-se ao relato culposo da descoberta do sexo pelo menino Carlinhos, narrador e principal personagem que, de um olhar adulto revê a inocência perdida. Enfim, já não é mais tempo de bodoque, o "puxado" da infância já não atormenta tanto quanto a dor do “gálico”. Carlinhos vai para o colégio, vai como as arribaçãs beber de outras fontes. Da janela do trem que o leva à outra estação da vida, vislumbra os campos queridos, num passado que renasce por meio da ótica do homem adulto, de alma cortada pela saudade. Para José Lins do Rego ia embora "o menino perdido, menino de engenho". Para nós ficava o doce achado de uma produção literária das mais significativas dos anos trinta, como um mel de furo a escorrer das formas de açúcar nos banguês.
Socorro Guterres