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  Quando o bonde da memória volta a passar

Pelas janelas do tempo, São Luís revive seus trilhos e encantos esquecidos, pelas mãos do mágico Augusto César Maia.

Mhario Lincoln
Por: Mhario Lincoln Fonte: Mhario LincolnAugusto César Maia
12/06/2025 às 16h50 Atualizada em 13/06/2025 às 22h00
  Quando o bonde da memória volta a passar
Augusto César Maia e Mhario Lincoln.

*Mhario Lincoln (Resenhas).

 

Meu amigo e irmão, Augusto César Maia tem o dom raro de transformar a nostalgia em avenida de saudades e fantasias. Ele sempre foi assim. Desde a época em que éramos jovens adolescentes. Então, quando se juntava a nós, Murilo Sarney, no velho bar na ponta D’areia, "Onde o Vento faz a Curva", aí a noite nunca acabava. 

É essa experiência, da noite, da vida, das ruas, dos paralelepípedos, dos becos, dos insights Baudelairianos, que resulta em mais uma peça lírica de Augusto, de forma mais que clara: seu amor saudosista pela Ilha dos Amores é explícito.

Hoje, nós três moramos fora de nossa cidade-berço: Murilo Sarney, nos píncaros do Céu. Eu, em Curitiba-PR e ele, no Rio de Janeiro. Mesmo assim, no poema “A Cidade e os Bondes”, ele acorda o trilho adormecido que rangia do São Pantaleão à Beira-Mar e devolve a São Luís o perfume dos velhos elétricos, como quem rega um jardim de latas cintilantes sobre paralelepípedos cansados. A mim me volta as lanceadas de papagaios (pipas) na Praça Deodoro, com (cerol) feito de lâmpadas florescentes esmagadas pelos bondes, nos trilhos de aço.

Contudo, ao trilhar “o rasto da serpente” do bonde da São Pantaleão, o poeta encontra o verso e ali e, como num passe de mágica, “inaugura-se” escritor. É a mais perfeita experiência de quem, diante da cidade que parte e regressa ao mesmo ponto, descobre que escrever é converter deslocamento físico em verticalidade de sentido.

Por outro lado, na passagem pela Beira-Mar, a visão do “pânico nas chamas” bordado nas cracas de “Maria Celeste” projeta o medo ancestral de quem vive cercado de água e cheiro antigo — lembrança das obrigações, incêndios e naufrágios que a Ilha guarda nos porões.

O poema, sem dúvida nenhuma, a meu ver, acusa a fragilidade dessa couraça marinha e ao mesmo tempo a santifica, como se o casco do navio e o casco do próprio corpo lírico partilhassem a mesma combustão de desejo e de perda.

Já no bonde da Gonçalves Dias, a discreta Ana Amélia arrepende-se de não ter dito adeus ao mar cheio de 'Boulougne's' – Ave, Gonçalves Dias! - sua mudez ecoa como saudade reversa, lembrando que há silêncios mais estridentes que sinos.

A cidade é aqui prisma de afetos recalcados: o casal que não acontece, o adeus nunca pronunciado, a palavra que, por não ser dita, transforma-se em pedra sobre o peito. A tristeza da personagem retoma o tema central do poema — o peso do não-dito no tecido da história.

E quando a composição chega ao Anil, as “línguas ferinas” que despem a cidade quase nua revelam o outro lado da memória comum: o boato, a calúnia, o rumor que corrói reputações como ferrugem nos trilhos.

Mas, ainda é a poesia, nesse momento de fragilidade do Homem, que assume postura estoica, apontando que não há nostalgia sem reconhecer também as farpas que o tempo deposita na carne coletiva.

E mais: o gesto lúdico de Augusto em recolher a cidade pelo rabo da serpente de ferro — é o mesmo que guiou sua pena quando, em 1985, estourou nacionalmente com o samba-enredo “Haja Deus”, levando a escola carnavalesca "Flor do Samba" a conquistar o coração do carnaval maranhense e brasileiro.  Ali, o poeta já intuía que o tambor, a cuíca e o (clarim do velho coreto da Praça Gonçalves Dias) tinham a mesma força para levantar muralhas invisíveis contra o esquecimento.

Mutatis Mutandi, meu amigo Augusto Maia mostrou mais uma vez (eu li e reli seu livro de crônicas, "No exílio com Gutemberg", e seu livro de poemas "Ofício das Madrugadas") que a prosa e a poesia podem vestir fantasias sem perder o cândido literário.

Isto é, no verso-sobre-verso, a saudade vira batuque; o batuque, saudade. Quem o conhece das rodas noturnas do "Reviver" sabe que o homem gentilmente chamado de Augusto Tampinha — carrega na pena e no verso um chamado ancestral, capaz de fazer chorar o mais cético frequentador da Praia Grande. No fundo, Augusto César Maia — poeta, letrista e escritor - é um guardião de uma São Luís que resiste ao infortúnio da solidão; igual um farol abandonado, na croa da Beira-Mar.

Deserções à parte, audacioso que sou, me apropriei da poesia dos bondes de Augusto César Maia e coloquei uma melodia nesse poema. Uma forma de agradecer a amizade e o aprendizado que, por anos, me fiz saber, diante das coisas que dele ouvi e por elas também sonhei.

 

A CIDADE E OS BONDES

* Augusto César Maia

 

Pelo bonde do "São Pantaleão"

Trilhei o rastro da serpente

Até encontrar o verso

E assim inaugurar-me poeta

 

[02]

Do bonde da "Beira mar"

Vi o pânico nas chamas

Bordado pelas cracas

Na saia de ferro de "Maria Celeste"

 

 

No bonde da "Gonçalves Dias"

A Ana Amélia sentadinha

Sem olhar para o oceano

Arrependida por não ter dito adeus

 

Já no bonde do "Anil"

Fugi das línguas ferinas

Que tagarelavam pelos bares

Deixando a cidade quase nua.

 

Blém! Blém! Blém, blém!

*****

Vídeo-Bônus

Letra de Augusto César Maia

Prompts musicais e arranjos: Mhario Lincoln

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