Terça, 18 de Novembro de 2025
13°C 18°C
Curitiba, PR
Publicidade

Deus ouve os oprimidos — Gofu, lançado ao Atlântico, venceu a morte e expôs a crueldade contra “clandestinos a bordo”. Livro de Elson Burity conta essa saga

Clandestino nigeriano, rebatizado Gofu Felix Corleoma, foi atirado do Aldebaran II em 31/12/2000, à deriva num barril, até ser resgatado em Tibau do Sul (RN). Caso reacende feridas de “clandestinos a bordo” investigadas no Brasil e no mundo.

01/11/2025 às 15h45 Atualizada em 02/11/2025 às 09h19
Por: Mhario Lincoln Fonte: Mhario Lincoln
Compartilhe:
Crédito: álbum pessoal do Comandante Burity
Crédito: álbum pessoal do Comandante Burity

Editoria-Geral da Plataforma Nacional do Facetubes c/Mhario Lincoln

  

A epopeia de Gofu Felix Corleoma — nascido Tope Aiyegbusi, nigeriano que partiu de casa aos 16 anos — é contada como quem percorre um mapa à força de sobrevivência: Quênia, Tanzânia, Zâmbia, Zimbábue e Botsuana até a África do Sul, sempre entre miséria e violência doméstica, até receber nova identidade para evitar deportação e alimentar o sonho de alcançar os Estados Unidos. Em Durban, embarca clandestino num cargueiro depois identificado como Aldebaran II.

 

Descoberto, é confinado e, na madrugada de 31 de dezembro de 2000, submetido ao clímax desta história: com um colete salva-vidas, uma corda, um pouco d’água e um barril, ele é empurrado do alto da popa para o Atlântico, em trecho com mais de cem metros de profundidade. A decisão, tomada como um ritual implacável, o lança a um estado de agonia que o texto detalha com sobriedade: frio, sede, sol cortante, cansaço extremo, braços e pernas amortecendo, peixes bicando a pele. Era apenas ele e a sua inabalável fé, último fio de lucidez.

 

Por volta de quinze horas e trinta minutos, já no limite, um pescador do barco Dois Irmãos avista ao longe o barril e o resgate se cumpre ao largo de Tibau do Sul (RN). Amparado pela Polícia Federal e pela Arquidiocese de Natal, Gofu obtém refúgio e recomeça. Quando o navio atraca em São Luís (MA), Capitania dos Portos e Ministério Público abrem investigação; o Tribunal Marítimo e a Diretoria de Portos e Costas registram a ocorrência, numa época em que dezenas de casos semelhantes compunham a estatística dura dos “clandestinos a bordo”.

 

Crédito: Elson Burity.

 

Esse é o tema impactante do livro “Um Clandestino Lançado ao Mar” que acabo de ler e analisar. A obra foi escrita por Elson de Azevedo Burity, ex-Capitão dos Portos do Maranhão, época do acontecido. Assim, Elson, Capitão-de-Mar-e-Guerra reformado da Marinha do Brasil, ex-integrante TTC do Tribunal Marítimo, onde participou de centenas de análises de processos envolvendo acidentes e fatos da navegação, teve cabedal suficiente para detalhar, na obra, fatos que poucos conseguiriam ter o dom para escrever.

 

Por isso essa narrativa é impecável e é explícita em diversos momentos, especialmente quando descreve o clímax do start da história: quando GUFU é atirado, sem piedade, ao mar feroz do Rio Grande do Norte até, em terra brasileira, conseguir a cidadania, o trabalho, o casamento, as duas filhas; e, ainda, mais tarde, uma doença. Essa tratada com restrições, sem que ele deixasse de seguir a vida.

 

Impressionou-me a escrita de Elson, quando conta os detalhes do barril e – de forma comedida, mas impávido - situa Gofu numa linha histórica de violência contra clandestinos que a comunidade marítima internacional conhece demasiado bem.

 

Visão geral.

 

Vale ressaltar, data vênia, fato de 1996, no caso do porta-contêiner Maersk Dubai, quando dois jovens romenos foram lançados ao mar em jangadas improvisadas por ordem do comando; outro stowaway teria sido morto a bordo. O episódio veio à tona quando outros filipinos se esconderam em um quarto clandestino e desembarcaram no Canadá, de onde denunciaram o crime — um escândalo que expôs a lógica de impunidade e o cálculo econômico por trás de decisões letais em alto-mar.

 

Em 2011, o navio Dona Liberta tornou-se símbolo de reincidência delituosa: relatórios e entrevistas reunidos por pesquisadores descrevem casting off de clandestinos e outras irregularidades, compondo um quadro de abusos persistentes em rotas comerciais globais.

 

O caso deste livro, é, de certa forma grandioso, porque há um registro de cada etapa: o renome civil adotado para prolongar a chance de permanência, o confinamento e o ato final de expulsão, o barril como artefato precário de vida, a visão de uma madrugada que decide destinos, o encontro com pescadores potiguares, a rede institucional que o acolhe e a investigação aberta quando o casco toca o porto maranhense.

 

É inegável a forma brilhante como o CMG Elson Burity escreve o texto que a cada página aproxima sua trajetória a de um “Odisseu”, mas sem alegorias; apenas pela rota, pelo tempo e pelos monstros. Aqui, de uniforme, prancheta e ordens de comando. No centro, prevalecem fé, coragem e a crença na justiça dos homens e de Deus, mas o que fica, sobretudo, é a documentação de uma prática que o mundo marítimo não conseguiu sepultar: a de despachar seres humanos ao mar para que não cheguem aos portos e não custem multas e papeladas.

 

Mhario Lincoln, editor-sênior da Plataforma Nacional do Facetubes, lê o livro.

Mas com Gofu, a fé inabalável é um ponto diferencial que o amparou até o último minuto. E quando os pescadores o avistaram, estava feito o milagre divino. A mão divina caiu sobre ele e o tornou história.

 

Parabéns, pois, Elson de Azevêdo Burity pelo trabalho hercúleo para desvendar e organizar essa obra histórica.

 

O livro tem organização de Elvandro Burity (APB-RIO) e projeto gráfico da POD EDITORA. A distribuição é gratuita. O ISBN é: 978-65-5947-418-9

 

Mhario Lincoln é presidente da Academia Poética Brasileira.

* O conteúdo de cada comentário é de responsabilidade de quem realizá-lo. Nos reservamos ao direito de reprovar ou eliminar comentários em desacordo com o propósito do site ou que contenham palavras ofensivas.
500 caracteres restantes.
Comentar
Gabriel Jacintho. Filho de MarinheiroHá 2 semanas Natal RGNNinguém mais sempre ocupa com o outro..Por isso, parabéns a você caro comandante pela beleza de história contada nesse livro. O Mhario como excelente jornalista que é, soube em poucas linhas nos mostrar toda a importância de seu livro, além de tambem destacar o seu lado humano.
Jacyra BendergelHá 2 semanas Rio Grande do Sul Parabéns comandante Burity. Apreciei o seu lado humano.
Julião de CastroHá 2 semanas Brasília DF Outras verdades ainda vão aparecer. Por isso, parabéns professora. Elson por esse magnífico trabalho.
Elson Burity Há 2 semanas WhatsApp/ Rio de Janeiro RJMuito obrigado meu amigo. Que essa odisseia do Gofu sirva de alerta, nas diversas Marinhas Mercantes, para que outros casos não se repitam. Que a piedade e a humanidade estejam sempre presentes nas mentes e ações dos comandantes dos inúmeros navios que cruzam os mares e oceanos. Forte abraço.
Mostrar mais comentários
Curitiba, PR
15°
Tempo nublado

Mín. 13° Máx. 18°

15° Sensação
2.57km/h Vento
90% Umidade
100% (15.22mm) Chance de chuva
05h20 Nascer do sol
06h44 Pôr do sol
Qua 24° 11°
Qui 24° 12°
Sex 27° 13°
Sáb 24° 15°
Dom 20° 13°
Atualizado às 00h01
Publicidade
Economia
Dólar
R$ 5,32 -0,12%
Euro
R$ 6,16 -0,05%
Peso Argentino
R$ 0,00 +0,00%
Bitcoin
R$ 506,266,83 -2,04%
Ibovespa
156,992,94 pts -0.47%
Publicidade
Lenium - Criar site de notícias