
Editoria-Geral da Plataforma Nacional do Facetubes c/Mhario Lincoln
A epopeia de Gofu Felix Corleoma — nascido Tope Aiyegbusi, nigeriano que partiu de casa aos 16 anos — é contada como quem percorre um mapa à força de sobrevivência: Quênia, Tanzânia, Zâmbia, Zimbábue e Botsuana até a África do Sul, sempre entre miséria e violência doméstica, até receber nova identidade para evitar deportação e alimentar o sonho de alcançar os Estados Unidos. Em Durban, embarca clandestino num cargueiro depois identificado como Aldebaran II.
Descoberto, é confinado e, na madrugada de 31 de dezembro de 2000, submetido ao clímax desta história: com um colete salva-vidas, uma corda, um pouco d’água e um barril, ele é empurrado do alto da popa para o Atlântico, em trecho com mais de cem metros de profundidade. A decisão, tomada como um ritual implacável, o lança a um estado de agonia que o texto detalha com sobriedade: frio, sede, sol cortante, cansaço extremo, braços e pernas amortecendo, peixes bicando a pele. Era apenas ele e a sua inabalável fé, último fio de lucidez.
Por volta de quinze horas e trinta minutos, já no limite, um pescador do barco Dois Irmãos avista ao longe o barril e o resgate se cumpre ao largo de Tibau do Sul (RN). Amparado pela Polícia Federal e pela Arquidiocese de Natal, Gofu obtém refúgio e recomeça. Quando o navio atraca em São Luís (MA), Capitania dos Portos e Ministério Público abrem investigação; o Tribunal Marítimo e a Diretoria de Portos e Costas registram a ocorrência, numa época em que dezenas de casos semelhantes compunham a estatística dura dos “clandestinos a bordo”.
Esse é o tema impactante do livro “Um Clandestino Lançado ao Mar” que acabo de ler e analisar. A obra foi escrita por Elson de Azevedo Burity, ex-Capitão dos Portos do Maranhão, época do acontecido. Assim, Elson, Capitão-de-Mar-e-Guerra reformado da Marinha do Brasil, ex-integrante TTC do Tribunal Marítimo, onde participou de centenas de análises de processos envolvendo acidentes e fatos da navegação, teve cabedal suficiente para detalhar, na obra, fatos que poucos conseguiriam ter o dom para escrever.
Por isso essa narrativa é impecável e é explícita em diversos momentos, especialmente quando descreve o clímax do start da história: quando GUFU é atirado, sem piedade, ao mar feroz do Rio Grande do Norte até, em terra brasileira, conseguir a cidadania, o trabalho, o casamento, as duas filhas; e, ainda, mais tarde, uma doença. Essa tratada com restrições, sem que ele deixasse de seguir a vida.
Impressionou-me a escrita de Elson, quando conta os detalhes do barril e – de forma comedida, mas impávido - situa Gofu numa linha histórica de violência contra clandestinos que a comunidade marítima internacional conhece demasiado bem.
Vale ressaltar, data vênia, fato de 1996, no caso do porta-contêiner Maersk Dubai, quando dois jovens romenos foram lançados ao mar em jangadas improvisadas por ordem do comando; outro stowaway teria sido morto a bordo. O episódio veio à tona quando outros filipinos se esconderam em um quarto clandestino e desembarcaram no Canadá, de onde denunciaram o crime — um escândalo que expôs a lógica de impunidade e o cálculo econômico por trás de decisões letais em alto-mar.
Em 2011, o navio Dona Liberta tornou-se símbolo de reincidência delituosa: relatórios e entrevistas reunidos por pesquisadores descrevem casting off de clandestinos e outras irregularidades, compondo um quadro de abusos persistentes em rotas comerciais globais.
O caso deste livro, é, de certa forma grandioso, porque há um registro de cada etapa: o renome civil adotado para prolongar a chance de permanência, o confinamento e o ato final de expulsão, o barril como artefato precário de vida, a visão de uma madrugada que decide destinos, o encontro com pescadores potiguares, a rede institucional que o acolhe e a investigação aberta quando o casco toca o porto maranhense.
É inegável a forma brilhante como o CMG Elson Burity escreve o texto que a cada página aproxima sua trajetória a de um “Odisseu”, mas sem alegorias; apenas pela rota, pelo tempo e pelos monstros. Aqui, de uniforme, prancheta e ordens de comando. No centro, prevalecem fé, coragem e a crença na justiça dos homens e de Deus, mas o que fica, sobretudo, é a documentação de uma prática que o mundo marítimo não conseguiu sepultar: a de despachar seres humanos ao mar para que não cheguem aos portos e não custem multas e papeladas.
Mas com Gofu, a fé inabalável é um ponto diferencial que o amparou até o último minuto. E quando os pescadores o avistaram, estava feito o milagre divino. A mão divina caiu sobre ele e o tornou história.
Parabéns, pois, Elson de Azevêdo Burity pelo trabalho hercúleo para desvendar e organizar essa obra histórica.
O livro tem organização de Elvandro Burity (APB-RIO) e projeto gráfico da POD EDITORA. A distribuição é gratuita. O ISBN é: 978-65-5947-418-9
Mhario Lincoln é presidente da Academia Poética Brasileira.
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