
Sergio Tamer, professor e advogado, é presidente do Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública – CECGP
O Estado brasileiro precisa reaver o seu monopólio da força, no sentido weberiano do termo, que aos poucos está sendo perdido para grupos paramilitares de narcoterroristas os quais, somente na capital fluminense, dominam 18,2% do território, segundo levantamento de 2024. Eles impõem regras, cobram “impostos”, aplicam castigos e até proíbem certas condutas entre membros da comunidade e do próprio agrupamento. Além disso, e segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, essas organizações criminosas movimentam, anualmente, e somente em quatro setores (ouro, combustíveis, tabaco e bebidas), R$146 bilhões por ano, sem contar com o faturamento de R$335 bilhões em cocaína. No setor de combustíveis, a estimativa é que as organizações criminosas movimentam anualmente R$61,5 bilhões, o equivalente a 8,7% do mercado da área.
Não é por outra razão que todo esse poderio financeiro aumenta o alcance bélico do crime no país, por meio das suas mais diversas ramificações, o que tornou a segurança pública o nosso principal problema. No Rio de Janeiro, a preocupação com a violência é da ordem de 71% da população. Trata-se, a toda evidência, de um problema político mas que não deve ser analisado sob o ardor do partidarismo cego e obtuso. Esse poderio todo também explica a apreensão, pela operação recente realizada no Rio, de 93 fuzis de alto potencial de fogo em mãos dos “soldados” do tráfico.
Ora, os 2,5 mil agentes civis e militares entraram nos complexos do Alemão e da Penha, levando ordem judicial para prender membros da facção Comando Vermelho que estavam se expandindo para 26 comunidades da Capital. Segundo o Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ), a denúncia que embasou a operação do dia 28 de outubro descreve uma estrutura de comando rigidamente organizada nos complexos da Penha e do Alemão. O documento detalha, ainda, o papel de cada integrante na hierarquia da facção. Todavia, de pronto os integrantes da facção reagiram ao ingresso dos policiais com bloqueios em vias estratégicas, incendiando ao menos 70 ônibus e utilizando drones equipados com explosivos para atacar os policiais — um método até então inédito em ações do crime organizado no Brasil. Durante o dia, o tiroteio se intensificou em vários pontos da cidade e levou ao fechamento de escolas, universidades e comércios. A estratégia, porém, liderada pela Polícia Militar, evitou que membros da comunidade, vítimas frequentes desses delinquentes, fossem atingidos em meio ao fogo cruzado. Dessa vez, não houve bala perdida a lamentar…
O drama, portanto, vivido nesses dias pelo Rio se constituiu, conforme a definição conceitual da Convenção de Genebra de 12 de agosto de 1949, em uma guerra urbana. Assim, ou o Estado brasileiro enfrenta com a força devida esses narcoterroristas ou terá um dia que entregar suas próprias armas, isto é, ceder o seu monopólio da força para esse grupo fortemente armado que já domina boa parte do território brasileiro e não apenas no Rio.
Embora considerada a mais letal no estado, com mais de 120 mortos, essa ação coordenada e planejada entre o MP, Polícia Civil e Militar do Rio tinha como objetivo, conforme amplamente divulgado, cumprir mandados de prisão contra membros da facção Comando Vermelho, fazendo valer o Estado de Direito. A Constituição Federal de 1988 reafirma isso: o uso da força é reservado a órgãos do Estado como Polícia Militar, Polícia Civil, e Forças Armadas. Mas quando há poderes paralelos em certos territórios, esse monopólio, assim compartilhado, ou é retomado ou será perdido. Daí que o tema da soberania aqui é evidente e a política nacional, de esquerda ou de direita, dividida por vezes entre traficantes e milicianos, não pode enfiar a cabeça no chão, na ilusão de escapar do perigo ao seu entorno. É compreensível, por outro lado, que alguns setores expressivos da sociedade, dentre eles algumas notórias instituições públicas e privadas, tenham compaixão e leniência com esses soldados do narcoterrorismo. Os chefes e cabeças dessas poderosas organizações do crime, ao movimentarem um orçamento anual bilionário, por meio de centenas de empresas de fachada, financiam campanhas políticas, garantem redutos eleitorais “fechados” com determinados partidos, e sabe-se Deus o que mais eles conseguem “comprar” e influenciar, inclusive na mídia, por meio de seus inúmeros tentáculos. No Ceará, por exemplo, o governador preferiu fornecer transporte para a mudança de moradores expulsos de suas casas pelos traficantes do que enfrentá-los com a força pública. De leniência em leniência o país vai capitulando! Em sua tese de pós-doutoramento, o juiz da auditoria militar do Maranhão, Nelson Moraes Rêgo, situa com muita precisão a questão da excludente de ilicitude em face do uso da força letal por parte de policiais quando no cumprimento de seu inescusável dever constitucional, isto é, na garantia da ordem e da segurança pública.
Há governantes, contudo, que ao invés do ônus do enfrentamento em defesa do Estado de Direito e da democracia verdadeira, queiram preferir um convívio harmônico e em paz com o crime organizado, numa espécie de pacto silencioso para que a vida social siga sem maiores convulsões em uma espécie de aparente tranquilidade. Mas essa é a “paz dos cemitérios”, a “paz” de uma sociedade onde há ordem sem liberdade, obediência sem justiça, silêncio sem cidadania. Na realidade, uma forma de despotismo ou tirania estabilizada pela violência. É a quietude opressiva do medo e da falta de vida. Mas a democracia, para ser efetivada em plenitude, exige uma luta constante e ela jamais será uma dádiva das elites mais sim uma conquista laboriosa da cidadania. Lutemos!
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