
*Mhario Lincoln
“(...) e onde há alguém aprendendo, havia minha mãe ensinando”. Orquídea Santos sobre a mãe, jornalista Flor de Lys.
Hoje, 3 de novembro de 2025, escrevo com a voz embargada e o coração agradecido: se viva fosse, minha mãe, Flor de Lys, completaria 95 anos. Em São Luís, o nome dela ainda abre portas de memórias; a jornalista e colunista social que atravessou cinco décadas de trabalho, presença e afeto. Quando partiu, aos 82, vítima de parada cardiorrespiratória, foi como se a cidade perdesse uma luz de sala: aquela claridade doméstica que orienta passos e aquece conversas.
Minha mãe foi pioneira na televisão maranhense com um programa social que permaneceu no ar por quase quatro décadas, entre 1973 e 2011, e transformou bailes e encontros em momentos inesquecíveis. Na maioria dos casos, a renda das festas que organizava ia para entidades assistenciais. A vida profissional, elegante em forma, mas rigorosa em método, tinha propósitos simples e inegociáveis. O objetivo sempre foi o de ajudar, aproximar, reparar gente, momentos e ideias. A crônica social, com ela, deixou de ser mera vitrine e virou ponte. Os registros de época lembram a maratona de eventos, a coordenação de concursos de Miss Maranhão e o vigor de um ofício exercido com disciplina diária e compromisso público.
Em 55 anos de carreira, Flor de Lys colocou a cidade no meio de um furacão de intensa atividade. Trouxe artistas, abriu salões, formou plateias sociais do mais alto nível humano. Entre as visitas que a memória coletiva guarda com carinho, a eterna Miss Brasil Martha Rocha, presença de festa e de história, testemunha da força com que minha mãe transformava cerimônias em encontros, moda em linguagem e elegância em ensinamentos.
Para mim, filho, ela foi escola antes de ser manchete. Aprendi com Flor de Lys a escrever como quem ouve, apurar como quem respeita, publicar como quem cuida. O método dela nunca me saiu da cabeça quando escrevi minha primeira crônica para o “Jornal Pequeno” – eu tinha 14 anos – cujo tema era o “Sítio do Físico”. Ela me ensinou uma sequência lógica: rigor na apuração e delicadeza na escrita (sem deixar a raiva ou a felicidade máxima intercederem). O texto só poderia ser finalizado, após a escuta das partes; a foto, só depois do consentimento; o crédito, esse, se fosse de terceiros, era obrigatório.
Quando a pauta pesava, ela repetia: “não esqueça de quem vai ler, meu filho. Nem todos pensam como você, nem tem a sua ideologia. Não coloque para fora ‘podres’ sem provas. Nunca!”. E a pauta mudava. Essa é a herança profissional que guardo. Isso também moldou o caminho de minha irmã, a jornalista Orquídea Santos, a voz que muito colabora na editoria séria da Plataforma Nacional do Facetubes, (www.facetubes.com.br), cujo objetivo primordial é o respeito pelo leitor, amor pela cultura, entusiasmo pela notícia boa que, quando chega, melhora a vida comum.
Volto às fontes e percebo como a cidade inteira reconheceu o que pressentíamos em casa. Uma de suas grandes amigas, a Dulce Prado, colega de Tribunal Regional Eleitoral (sua fonte única de renda), disse em um dos aniversários de minha mãe: “Flor de Lys é mais que um nome de coluna social; ela é amiga querida, porque é uma voz pública exercida com doçura e firmeza”. (JP). Após sua morte, em 2011, guardei muitos dos obituários publicados na imprensa local. Todos, sem exceção, mostraram Flor de Lys autêntica, incansável no trabalho; de uma grandeza sem ego exacerbado e sem ruído de pompa, que ajudou a erguer, por tantos anos, a autoestima social de São Luís. Agora, a cada novembro, a cada aniversário que não celebramos no abraço, a cidade dá um jeito de reacender essa luz.
Quando escrevo “mãe”, ouço passos no corredor de um tempo que não passa. É assim que o meu luto se confunde com a minha eterna gratidão. Penso em todos os jovens que ela encaminhou para os estudos, no apoio silencioso que transformou o destino daquelas pessoas. Penso, sobretudo, no gesto final de todo o seu trabalho. Certa vez eu perguntei: “Por que a senhora com 79 anos continua tão ativa?”. Ela me olhou e disse: “Minha função é fazer com que a cidade se reconheça no espelho; e a tratar bem o próprio reflexo”. De uma profundidade incrível que só fui entender alguns anos mais tarde, sentindo o amor com que São Luís do Maranhão expressa saudades dela.
Sem nenhuma dúvida afirmo: minha mãe Flor de Lys continua a nos orientar (a mim e as minhas irmãs, bem como a nossa família inteira). Na sala iluminada de cada causa que prospera, no sorriso de cada leitor que se sente visto, no ofício do filho e da filha que seguem escrevendo sobre a vida. Desta forma, sei que Flor de Lys honrou o jornalismo maranhense; São Luís a reconheceu; o Maranhão inteiro se beneficiou de sua elegância ativa. E só temos como agradecer a toda essa lição humanitária. É por isso que repito: o amor e o respeito não são genéticos: precisam acontecer de verdade! Parabéns, Mãe!
*Mhario Lincoln é jornalista profissional e Editor-sênior da Plataforma Nacional de Curitiba. (Curitiba-PR).
VÍDEOS-BÔNUS
Em tempo: (01) - A entrevista concedida a mim, em 2007, em Curitiba -Paraná, 3 anos antes de seu falecimento:
(02) - A letra de Flor de Lys, transformada em melodia pelo saudoso Wellington Reis e interpretada pelo grande Salomão Junior.
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