*Mhario Lincoln
Em 2001, o poeta Raimundo Fontenele lançou mais uma obra sua, em um evento que foi uma verdadeira celebração de verdades. No dia 24 de novembro daquele ano, publiquei uma matéria-convite em minha coluna no glorioso “Jornal Pequeno”. Hoje, ao relembrar esse episódio, celebro mais de 23 anos de uma sólida amizade com o poeta. Parabéns, Raimundo Fontenele!
Matéria original:
“A livraria ‘Poeme-se’ convida todos para o lançamento de mais uma obra do poeta Raimundo Fontenele, no dia 29 de novembro de 2001, a partir das 19 horas”. Na verdade, este foi o seu sétimo livro de poesias de Fontenele. E muito especial: com orelha de Arlete Machado e apresentação do poeta Nauro Machado. Escrito entre 1996 e 2000, o livro intitulado “Marginais” presta uma homenagem poética a figuras como Buda, Cristo, Joana D’Arc, Mozart e Van Gogh, que, de uma forma ou outra, estiveram à margem de algum processo da existência.
Bom frisar que toda a experiência humana e poética, toda dor e alegria do ser estão retratadas em “Marginais”, uma prova de que, para Fontenele, arte e vida caminham juntas em direção ao que é belo e verdadeiro.
Para contextualizar esse espírito de reconhecimento do valor do outro, podemos citar o pensador do século XX, Martin Buber. Em sua obra “Eu e Tu”, Buber explora a importância do encontro genuíno entre os seres humanos, onde cada indivíduo é reconhecido em sua totalidade e valor intrínseco.
SOBRE O POEMA
O estrangeiro
Raimundo Fontenele, do livro "Marginais".
Eu nunca li os contos de Pablo Picasso
nunca vi a estrela de Davi.
Sou um poeta menor
desses que se cata às tontas.
E sou um homem comum
desses que se manda à merda.
Vim comigo, e só,
pregar nos desertos.
Lugar nenhum é meu.
Nem em mim, nem nos outros.
E tudo que ouço é música:
a bastarda dos sentidos.
Perto de um paraíso alheio,
tão longe do meu inferno.
Estrangeiro, estrangeiro.
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O poema "O Estrangeiro" de Raimundo Fontenele carrega uma densidade existencial que se revela tanto no isolamento do eu lírico quanto em sua busca por um pertencimento que nunca se concretiza. Esta obra, ao descrever a sensação de alienação, se aproxima das angústias existenciais presentes na aventura imortal de Caronte.
E Por que? No poema de Fontenele, a figura do "estrangeiro" é central. Ele é alguém que nunca leu os "contos de Pablo Picasso" e que não conhece a "estrela de Davi", referências que simbolizam uma desconexão cultural e espiritual com o mundo ao seu redor. O "poeta menor" descrito no poema é uma figura que, apesar de sua humildade, carrega o peso de um conhecimento profundo, mas marginalizado.
Essa percepção de alienação é uma temática comum na obra de poetas como Fernando Pessoa, especialmente em "O Guardador de Rebanhos" de Alberto Caeiro, um dos heterônimos de Pessoa. Caeiro, assim como o eu lírico de Fontenele, vê o mundo de maneira simples e direta, mas também com uma profunda sensação de não-pertencimento.
A musicalidade da "bastarda dos sentidos" que Fontenele menciona é outro ponto de confluência entre ele e outros poetas que lidaram com a sensação de deslocamento. A "música" aqui não é apenas um som, mas um eco das emoções humanas que tentam fazer sentido de uma existência fragmentada.
Aliás, como Arthur Rimbaud, cujo trabalho, especialmente em "Uma Temporada no Inferno", lida com a busca incessante por um significado, mesmo quando este permanece elusivo, o "paraíso alheio", de Fontenele, está sempre fora de alcance e reflete o anseio por algo transcendental que nunca é alcançado, similar à travessia do Caronte.
Isso me levou imediatamente a sentar na mesma mesa de Dante Alighieri e pedir para ele falar sobre Caronte, citado em sua obra monumental, “A Divina Comédia”. Dante menciona Caronte extamente no “Inferno”.
Caronte é o barqueiro que transporta as almas dos mortos através do rio Aqueronte para o submundo. A descrição de Caronte é vívida e poderosa, destacando seu papel crucial na travessia das almas. quem leu sabe do trecho:
(...) Inferno, Canto III: "E eis que surge uma barca, ao longe, uma vez que, em nossa direção, vinha alguém. Tão velha que não passaria como nova. No leme, sentado e pilotando, estava o velho e barbudo Caronte, todo vestido de andrajos e bruxuleando olhos de fogo.(...) Ai de vós, almas danadas! Não esperem jamais ver o céu! Eu vos levo para a outra margem, para as trevas eternas, no fogo e no gelo.(...) Caronte, o demônio, com olhos de brasa, lhes acena, e todas as almas se ajuntam na margem. Batem os dentes, e no momento em que ele as acena, ele as golpeia com seu remo cruel."
O poema de Fontenele também me remeteu a John Keats, poeta inglês a morrer com 25 anos. Não o li, mas en passant tinha algo sobre Caronte, em seu poema “Endymion”. Voltei às minhas pesquisas e descobri uma passagem onde se lê:
“E assim, com passos lentos e pesados, ele se aproximou da margem do rio, onde Caronte, o velho barqueiro, aguardava com seu barco sombrio. As águas escuras refletiam a luz pálida da lua, enquanto as almas dos mortos esperavam em silêncio pela travessia.” Não satisfeito, fui ver resenhas desse poema e aprendi que Keats usa a figura do barqueiro para explorar temas de morte e transição, refletindo sobre a jornada das almas e a passagem entre diferentes estados de existência.
Exatamente o que Raimundo Fontenele me faz enxergar com esse toque de midas, abaixo:
"(...) Perto de um paraíso alheio,
tão longe do meu inferno.
Estrangeiro, estrangeiro."
Mhario Lincoln(*) é presidente da Academia Poética Brasileira.
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