Raimundo Fontenele*
Como definir ou redefinir o poema e/ou o verso, quando sua estrutura e seu, por assim dizer, “fazimento” fogem àquilo que o nosso domesticável e domesticado olho clínico e crítico acostumou-se a considerar verso, poema, poesia?
Assim como a mudez da fala não exclui o pensamento e a ideia que existem por trás dela, dentro mesmo do silêncio de uma fala amordaçada por tibieza, medo de chocar os doutos e pensadores que, em determinado tempo e lugar, ocupando púlpitos e cátedras, detém a verdade absoluta sobre tudo aquilo que o nosso intelecto é capaz de criar e produzir, ou chutando o balde como disse Rimbaud com outras palavras, o “tal desregramento de todos os sentidos”, va bene, a verdadeira poesia foi, é e permanece uma das criações do espírito humano mais impossível de se definir, explicar-se por si mesma, porque sendo revelação é consequentemente mistério.
Outros pensadores-poetas, talvez mais argutos e menos distraídos que eu, encontraram chaves e abriram portas que os conduziram a posições privilegiadas no mundo da criação intelectual e poética. O que Goethe escreveu é fascinante: o seu Fausto desce às profundezas da alma humana em busca de riqueza, poder e glória, mas ao fim e ao cabo a única coisa que deseja é a salvação ou redenção espiritual. Na terra e no engendramento das construções materiais e científicas, dialéticas ou vocacionais, não há nada que torne o homem feliz, porque não há nobreza e nem beleza na grande maioria das coisas que a humanidade faz. Tudo peso morto, carta fora do baralho.
Amamos as metáforas, os símbolos, os mitos e os signos porque temos a vocação para o amor e porque não podemos viver desgarrados dos nossos semelhantes.
Emergir de um lago estagnado, cuja água ameaça tornar-se pântano, e voltar a fluir qual um manso rio ou mar bravio, é uma tarefa para poucos.
Mhario Lincoln enfrentou esse desafio, que era o de transformar-se de um jornalista competente em um intelectual e sobretudo um poeta de excelência. Certamente décadas e um amontoado indizível de livros e pensamentos foram consumidos dia após dia, noite após noite, ano após ano, numa luta que é mesmo insana e, em determinados momentos, quase doentia.
Seu senso de humor e de trabalho, sua sofreguidão em arrancar as inúmeras máscaras que lhe encobriam e escondiam a essência, feitas com o arcabouço social que é sempre uma prisão, uma trava na porta que não é aberta porque ela conduz à luz do entendimento mais claro e completo e muitos permanecem e querem que todos permaneçam na escuridão. Pois o poeta arranca essas máscaras e traz à tona aquele verso impulsivo, que nasce rompendo vísceras, aquele verso trabalhado lenta e pacientemente ao correr dos anos, com as ferramentas que a leitura e a meditação foram pavimentando nesse seu caminhar em direção às palavras mais puras e às letras que se transformam no verbo sagrado que chamamos poesia.
É esse o Mhario poeta que neste seu livro expande palavras e metáforas para além dos limites do que é permitido, e rompe a casca e a carapaça que nos protegem do tabu do sexo, dos salamaleques sociais e da urgência de só dizer verdades que são só suas, detentoras de uma marca original, seus poemas que buscam a perfeição e a glória de haverem sido ditos mesmo que incomodem os bem pensantes da colméia social cujo mel é travoso e amargo. O poeta tem sensibilidade e sabe dizer que:
“Amores imaginários
espalhados pela casa
onde, antes, éramos
duas nadilhas:
síndrome de Alice,
no País das Maravilhas.
Éramos um, ou
outro, aborígena,
com síndrome da
mão alienígena!
Éramos dois e
não éramos
nenhum, algum;
todos por um
ou imitando Ogum
para disfarçar
intimidade!
Éramos um em dois,
para logo depois,
viver uma nudez involutária
de maníaco com 'toque',
para no amanhecer,
postar no TIK-TOK.”
.........
Ilusões telúricas?
..........
Neste poema NUDEX o poeta Mhario Lincoln faz uma espécie de desnudamento, com muito bom humor, de alguns símbolos e signos da cultura do nosso tempo. Leveza e fluidez nos convidam a refletir como tudo é a um só tempo múltiplo e uno. E que o sexo, muito bem disfarçado, faz um bem enorme a nós todos.
Esta é uma boa porta de entrada para começarmos a entender a multiplicidade dos versos e complexidade da sua poética, pois engana-se quem vê nestes versos apenas a leveza a que me referi.
“Éramos dois e / não éramos / nenhum, algum;” eis aqui uma sólida construção poética de quem atingiu, por intuição ou por malícia no trabalho, no estudo ou no pensar poeticamente, um lugar cativo e de honra nas letras maranhenses.
Mhario Lincoln saiu de sua pátria confortável para empreender as viagens de circunavegação em torno de si e do mundo que o cerca, qual um Ulisses ultrajado na sua honra, porque sabe que homens medíocres espreitam-no em todos os lugares em que esteja.
E o poeta navega, agora livre e liberto de amarras psicológias e morais; na companhia de Vasco da Gama ou de Cabral pode fazer o percurso das águas e das lágrimas, sabedor, como aqueles antigos navegantes, nossos antepassados em suas embarcações de ouro, que “navegar é preciso, viver não é preciso”. E abre, assim, as comportas do seu canto:
“Caminho das Índias:
como bandeiras desfraldadas,
sem mastros.
Coquilhas e lingeries soltas
na cabeça de meses
na água, flutuando
no chão de estrelas:
uma compensação factual
de quem sonhou ser
Vasco da Gama
para conquistar insígnias,
ou Álvares Cabral trocando
espelhos e, de soslaio,
olhando todos as partes
das índigenas, com pelos
arrepiados pela ignorante
curiosidade máscula.
..........
Mácula medíocre! "
..........
Terra à vista e poemas a bordo, eu os convido a fazerem comigo a leitura dos versos deste poeta maduro, seguro de si e da qualidade excepcional da sua poética.
“Olhos esbugalhados por insônia noite
Vi, pasmo, a borboleta virar larva
entre os veios láticos dos dentes do ventre
Vontade intangível de te ter, como eu queria.
Olhos famintos vejo o sol correr da noite
levando o resto polifônico dos berros do chantre
Minha marca ébria se desenrola do cetim.
...........
Dor de ostra, para suprir o ego de ser pérola!"
..........
Ler e reler para buscar o entendimento mais preciso e precioso de quem aprendeu a jogar com as palavras, tingindo-as com as cores da emoção mais substantiva, e subvertendo tudo: verso, verbo, o próprio coito e a linguagem:
“Como são lindos os espamos da noite cíclica
Na apoteose de balzaquianos afluentes.
"E Vênus com razão inveja o charme sáfico!"
Era, eu, um homem com estupidezas penitentes,
e a luz impenetrava no vértice de minha clausura.
"deixa o velho Platão franzir a testa austera"
Insana, sob o túnel da saia de mármore:
Ode a Eros e Afrodite, sobre a mesma textura:
"E o amor tanto rirá seja do Inferno ou Céu!
A que nos quer a lei dos justos ou injustos?".
Que se libertem gema e clara do mesmo ovo,
tão reais como gozos estéticos de um crisântemo;
irreais como a árvore-ovário, discricionária: pobre árvore!
........
"De seu corpo ela fez enfim, pasto supremo”.
.........
Não sendo eu, nem o poeta Mhario Lincoln adeptos da verborragia oca de mensagem e de sentido, nos damos por satisfeitos quando encontramos leitores e criadores do nosso nível: homens simples, sem a pavonive dos que se crêem superiores, e é isto a felicidade suprema das pequenas coisas: ele, feliz por ter seu nome inscrito no Pantheon da Cultura Maranhense, ao lado de tantas ilustres figuras, Sotero, Nauro, Tribuzi. E eu, feliz por ter a grata surpresa de reencontrá-lo décadas e décadas depois daquela nossa vidinha na São Luís dos anos sessenta, vivendo na Curitiba onde já vivi, e de lá nutrindo o nosso mundo de uma belíssima e verdadeira poesia que é toda nossa fé e esperança.
Vamos ler o Mhario?
“O COITO
O fracasso é insólito, a decadência
espirra fezes por sobre o último pio
do austero gavião, morto por ciúmes.
Os 'bruguelos' sentirão falta das bicadas
e as cobras deixarão de sonhar voando.
Lívida vida (des)humana
de caatingas em caatingas, até se ancorar
em um poste de cimento qualquer,
nas esquinas escuras da noite pálida.
Gaviões, 'bruguelos' e cobras se arrastam
para distrair a solidão dos becos
e a insalubridade de um coração que cospe,
após virar latrina de 10 reais: e não beijar mais.
Supre-se do nojento ósculo escarrado
de um gavião qualquer, morto por ciúmes
à beira das ruelas do xirizal.
.........
Há coito que não cala, nem sangra mais…"
.........
Esta é apenas uma pequena, mas expressiva amostra da poesia que lhes espera ao mergulharem na profundidade da poética contida neste seu livro O SEXTO SEXO. Vamos ler juntos?
*Escritor maranhense
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