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Por que traduzir Arthur Rimbaud é tão difícil? Porque não é apenas traduzir, sem sentir!

A melhor tradução brasileira: Lêdo Ivo explica como proceder em seu próprio trabalho de tradução.

Mhario Lincoln
Por: Mhario Lincoln Fonte: Grupo de Pesquisas do Facetubes
09/10/2024 às 16h04 Atualizada em 09/10/2024 às 20h22
Por que traduzir Arthur Rimbaud é tão difícil? Porque não é apenas traduzir, sem sentir!

Grupo de Pesquisas do Facetubes

Arthur Rimbaud, (1854-1891) , nasceu em Charleville, em 20 de outubro de 1854. Foi um prodígio literário francês cuja obra, escrita predominantemente na adolescência, revolucionou a poesia moderna. Desde cedo, demonstrou um talento excepcional, compondo os seus primeiros poemas aos 15 anos, nos quais já rompia com as convenções literárias da época. Com um espírito rebelde e insurgente, Rimbaud desafiava não apenas as normas poéticas, mas também as sociais, fugindo de casa diversas vezes para escapar do ambiente provinciano e da autoridade rigorosa de sua mãe.


Em 1871, Rimbaud mostrou a Paul Verlaine, um renomado poeta simbolista, alguns de seus poemas. Impressionado pela genialidade do jovem, Verlaine começou-se uma relação tanto criativa quanto amorosa, marcada por intensos momentos de trabalho artístico, mas também por conflitos e excessos. Juntos, mergulharam na vida boêmia, viajando pela Europa e explorando novas formas de expressão literária.


No entanto, o relacionamento entre Rimbaud e Verlaine tornou-se cada vez mais tumultuado. Em 1873, num episódio dramático, Verlaine, num acesso de ciúmes e embriaguez, atirou em Rimbaud, ferindo-o no pulso. Este incidente levou à prisão de Verlaine e ao fim definitivo da relação. Completamente desiludido e solitário, Rimbaud surpreendeu o mundo literário ao abandonar a poesia aos 20 anos de idade.


Após deixar a literatura, Rimbaud levou uma vida errante, viajando pelo mundo e assumindo diversas ocupações. Estabeleceu-se na África, onde trabalhou como comerciante, explorador e mercador de café, além de se envolver em atividades menos lícitas, reforçando sua imagem de gênio inconformista e aventureiro.


Rimbaud faleceu de câncer aos 37 anos, mas o mito do poeta rebelde continua a encantar gerações de leitores, escritores e artistas. Sua experimentação linguística, imagens oníricas e temas de revolta, liberdade e transcendência consolidam-se como um dos maiores poetas de todos os tempos.


A crítica literária Enid Starkie, em sua biografia sobre Rimbaud, afirma: “Ele foi o poeta que viveu sua própria obra, explorando os limites da experiência humana e da linguagem como ninguém jamais o sofrera”.


Um dos grandes exemplos da poesia rimbaudiana é "O Barco Ébrio", cuja interpretação seguiu a alegoria da condição humana e da busca pelo sentido da existência. Leia três estrofes, abaixo:

"(...)
Eu, barco naufragado entre as marinhas tranças

pelos tufões aos ermos do éter arrojado,

cujo casco ébrio de água os veleiros das Hansas

e os Monitores não teriam resgatado;

 

livre, a fumar, envolto em brumas violetas,

que perfurava o céu vermelho como um muro,

que traz – confeitos deliciosos aos bons poetas –

liquens do sol e cusparadas do azul-escuro;

 

prancha louca, a correr entre uma escolta preta

de hipocampos, rajada a estrias resplendentes,

quando julho esboroava a golpes de marreta

do céu ultramarino os funis comburentes;
(...)".

Melhor intérprete de Rimbaud: Lêdo Ivo.

 

Essa poesia foi escrita em 1871. "O Barco Ébrio" é um poema narrativo que descreve a jornada de um barco à deriva, personificado e consciente, que se liberta dos controles humanos e navega pelas éguas em busca de experiências ilimitadas. O barco simboliza o próprio poeta, que anseia por libertar-se das convenções sociais e literárias para explorar novos horizontes da percepção e da expressão artística.


Rimbaud utiliza uma linguagem rica em metáforas e imagens sinestésicas, criando um universo onírico e alucinante. O poema é composto por uma sequência de quadros vívidos que retratam paisagens exóticas, naturais intensas e visões fantásticas. Essa sucessão de imagens reflete a experimentação sensorial e emocional do eu lírico, que se entrega a uma espécie de êxtase exploratória.


A estrutura formal do poema, escrita em alexandrinos, contrasta com a temática de descontrole e liberdade, evidenciando a maestria técnica de Rimbaud ao manipular formas tradicionais para expressar conteúdos revolucionários. A musicalidade e o ritmo são cuidadosamente trabalhados, contribuindo para a atmosfera de movimento contínuo e fluido.


"O Barco Ébrio" também pode ser interpretado como uma alegoria da condição humana e da busca pelo sentido da existência. O barco, ao desvincular-se de seu propósito importante, representa o desejo de transcender os limites pela razão e pela sociedade. No entanto, essa busca também traz a sensação de perda, solidão e esgotamento, aspectos que emergem nos momentos finais do poema.


A influência deste poema é profunda e rigorosa. Rimbaud inaugura uma nova estética poética que se move antecipadamente como o simbolismo e o surrealismo. Sua capacidade de captar o inconsciente e de traduzir emoções complexas em imagens inovadoras abriu caminho para que outros escritores explorassem as profundezas da subjetividade humana.


TRADUÇÃO


Em um admirável artigo sobre tradução da obra de Arthur Rimbaud, o imortal da ABL, Lêdo Ivo explica como proceder em seu próprio trabalho de tradução:


"Ao traduzir Rimbaud, utilizei, evidentemente, os melhores textos — o da Pléiade, previsto por Rolland de Reneville e Jules Mouquet, para Une Saison en enfer , e o de Bouillane de Lacoste, para Illuminations . Em ambos, foram corrigidos os erros e incoerências do texto tradicional de Patrice Berrichon. E, se ora me refiro a esse detalhe, é que depois de um texto suficientemente fidedigno e confiável torna-se essencial para que o tradutor cumpra com eficácia o seu ofício — o qual, aliás, deve assentar-se no conhecimento das duas línguas, evitando-se, assim, as ocorrências anedóticas ou degradantes ou os molestamentos dos que traduzem livros de Economia e Finanças, Administração e Ciência Política num jargão anglo-piauiense."


A Genialidade


O segredo das traduções passa rigorosamente pelo conhecimento da língua-mãe e pela sensibilidade efusiva do tradutor. Veja:


"La mer de la velalée, diga que les seins d'Amélie." / 'O mar da vigília, tal como os seios de Amélia.' 


Nesse caso específico, a realidade verbal habita o poema, dispensando a intermediação da realidade vívida ou ambiental — e como traduzir essa realidade que já cortou as amarras com a outra realidade, como um navio que, tendo levantado a âncora, não está mais no porto?"

Aqui, Ivo destaca a musicalidade e a modulação intrínsecas à poesia de Rimbaud. O tradutor enfrenta o desafio de transporte não apenas o significado literal das palavras, mas também a sonoridade e a atmosfera que permeiam os textos originais. A linguagem poética de Rimbaud é autônoma, criando uma realidade verbal que independe do contexto externo.

Manuel Bandeira, renomado poeta brasileiro, também comenta sobre a tradução de Lêdo Ivo:


"Não tenho tempo agora de cotejar com o original de Rimbaud a tradução de Lêdo Ivo. Mas imagino que o seu trabalho principal terá consistido em achar em português os sucessores dos sortilégios verbais do Vidente. Comparem-se estas três linhas de 'Ornières': '— Même des cercueils sous leurs dais de nuit dressant les panaches d'ébène, filant au trot des grandes juments bleues et noires' com a tradução de Ivo: 'Até esquifes sob seus dosséis de noite, erguendo os penachos de ébano, correndo ao trote de grandes éguas azuis e negras'. 'Grandes juments bleues et noires' difere muito, do ponto de vista da alquimia verbal, de 'grandes éguas azuis e negras' A tradução literal deu certo, no entanto: 'égua' é mais. belo que 'jumentos', 'azuis e negras' é tão belo quanto 'bleues et noires'. Mas se não fosse assim, Ivo teria de dar um jeito fora da letra para não trair a forma — esta forma que é essencial em Rimbaud (Claudel comparou-lhe a sonoridade à do 'bois moelleux et sec d'un Stradivarius'). Que dizer de certos poemas de Une Saison en enfer ? Eu duvidei e fiz pouco quando Ivo me falou de sua tradução. Devo, porém, considerar que ele lavrou um tento, aproximando-se bastante do original sem mentir à poesia do original. Seria muito difícil, senão impossível, fazer melhor."

 

Musicalidade


Na verdade, a poesia de Rimbaud é destacada por sua musicalidade e pela criação de uma realidade verbal autônoma. O desafio do tradutor reside em transporte não apenas o significado, mas também a atmosfera, o ritmo e a melodia que são intrínsecos aos poemas. Lêdo Ivo compara essa tarefa de traduzir uma "chave sem porta", diminuindo a dificuldade de capturar o "mistério genuíno" da linguagem poética de Rimbaud.


A questão sobre a traduzibilidade de Rimbaud suscita reflexões sobre os limites e possibilidades da tradução literária. A metáfora da "bela infiel" sugere que a tradução é um ato de recriação, onde o tradutor deve ser fiel ao espírito da obra, mesmo que isso implique em desvios da literalidade. Essa dualidade entre fidelidade e infidelidade é intrínseca ao ofício do tradutor, especialmente quando se trata de poesia, onde forma e conteúdo estão indissociavelmente ligados.


Enfim, a tradução pode ser uma ponte entre culturas, permitindo que a universalidade da poesia de Rimbaud seja apreciada em diferentes contextos linguísticos. Embora a tarefa seja repleta de desafios, é possível, através de sensibilidade e domínio técnico, preservar a magia e a profundidade da obra original.

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Peroração


Aliás, vale lembrar: Rimbaud é traduzível? É intraduzível? Sim e não, isto e aquilo, ambas as respostas são cabíveis, desde que se veja numa tradução aquela bela infiel a que alude Émile Herriot.

 

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Joizacawpy Há 9 meses São luís Que belo texto, tudo que fala sobre mudanças me atrai, na literatura em específico, gosto muito dos perfis arrojados que desafiam os rigores criados um dia em algum lugar e substituídos por originalidade, falo da capacidade de criação de ousar trazer o novo e sustentá-lo em sua autenticidade que com certeza surge nas ideias abundantemente do autor livre para criar. Que bom conhecer um pouquinho de Rimbaud, obrigada facetubes.
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