*Mhario Lincoln
Eu nunca aprendi a escrever uma resenha dentro dos limites que a técnica impõe: cabeça, tronco e membros. Aprendi ainda na época do colegial traduzir o que via e lia ('descrições', quem lembra?), de forma livre, escrevendo o que o pensamento absorvia naquele momento. E é assim até hoje.
Por exemplo, li e reli este belo espécime lírico da incrível Sharlene Serra e não resisti afirmar que é, antes de um poema, uma meditação profunda sobre a transcendência do espírito humano, além das limitações físicas do corpo.
Foi isso que senti e essa sensibilidade me levou a acrescentar: essa voz poética usada por Sharlene, nesse caso, explora a essência ontológica da existência. Isso me levou imediatamente a muitas indagações filosóficas lá do Renascimento. Ao questionar, por exemplo, sua composição física—"Eu, formado por átomos, células, tecidos, órgãos, sistemas? Não!!!"— ela a mim me pareceu rejeitar a visão materialista para abraçar uma compreensão mais espiritual do ser.
Daí fica inevitável não convidar para a mesma mesa Marsilio Ficino, (filósofo italiano e humanista florentino, figura que conheci semana passada, quando pesquisava para redigir a análise dos versos de Alcina Maria). Assim como Sharlene, Ficino acreditava que a alma era uma ponte entre o mundo físico e o espiritual, ideia que ressoa quando a confreira APB-DF declara: "Sou matéria viva, lida ou escrita. Cada parte de mim é verso". Aqui, a poetisa se define não pelos componentes físicos, mas pela essência poética que permeia sua existência.
Por outro lado, também me emocionei com o verso: " Sou o próprio sangue que percorre a veia, sai da tinta e encharca o papel ", ao meu ver, um raríssimo exemplo da transcendência do físico para o metafísico. Prova inconteste, a meu ver, que a criação artística "é uma extensão vital do ser", como dizia Marsilio Ficino.
Tudo isso, a poesia de Sharlene Serra provoca: a poesia bem-feita, bem-elaborada bem do jeitinho que Adrienne Rich (feminista, poeta, professora e escritora americana, que também a conheci recentemente), afirmou: "A poesia pode quebrar os bloqueios de possibilidades, restaurar zonas entorpecidas ao sentimento, recarregar o desejo."
Olha que coincidência: o poder da poesia em despertar sentimentos emoldurados com a força da cura emocional pela autorreflexão. Exatamente isso que Sharlene diz em, "nos faz esquecer a matéria física e nos transforma em seres espirituais". Sem dúvida, uma alquimia da alma para a purificação e elevação do 'eu poético'. Isso é gratificante se ler.
E na conclusão do poema, a poeta maranhense afirma: "A poesia é a minha própria matéria; a terra se saciará e, através da minha história, ela se eternizará". Esta declaração reforça a crença na imortalidade alcançada por meio da criação artística. Isso é tão forte que essa ideia chega a ser compatível com “o pensamento renascentista sobre a perenidade da arte e da literatura como meios de atingir a eternidade”, de acordo com que observei em algumas obras de artistas e escritores que buscavam deixar um legado duradouro.
Sim, Sharlene Serra, você foi tocar em algo lá do Renascença, que também me instruiu em algum momento dessa minha vida 'vagamunda', literariamente falando. Aprendi, após muito vagamundiar, que o ser humano ocupa uma posição única no universo, mesmo dotado de livre-arbítrio (esse é o grande problema, a meu ver) e com capacidade limitada de autotransformação. Sim. Eu disse "limitada", com base no que li em "Elogio à Loucura", de Erasmo de Roterdã, porque a capacidade humana de autotransformação é limitada em momentos em que as imperfeições naturais, as paixões desordenadas e a falta de compreensão plena de si mesmas interferem no processo de crescimento pessoal.
Porém, quando Sharlene Serra, em "Eternidade", aborda seus conceitos e autorreflexões, me levou imediatamente a entender essa poesia como uma ponte entre o passado e o presente, unindo a introspecção pessoal com questões universais sobre a natureza da existência. Desta forma, ela não apenas enriquece a tradição literária, mas também convida o leitor a participar dessa exploração profunda do ser. E eu fiz isso!
Obrigado. Muito feliz em ter lido e tentado compreender sua lírica, confreira querida. Sucesso, sempre!
Mhario Lincoln é presidente da Academia Poética Brasileira.
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A POESIA
Eternidade
Eu, formada por átomos,
células, tecidos, órgãos, sistemas?
Não!!!
Sou matéria viva, lida ou escrita.
Cada parte de mim é verso,
na textura da pele, na respiração,
no paladar da prosa,
no arrepio da coerência e da coesão.
Sou o próprio sangue que percorre a veia,
sai da tinta e encharca o papel
com vida que reluz na transparência da minha alma.
(Que ora a(dor)mece, ora (ama)nhece.)
Sou tal qual um livro que quer ser lido.
Adentrem em mim!
Não liguem os interruptores do templo;
a alma já tem luz própria
e os teus olhos perceberão o iluminar da poesia
e o quanto ela brilha.
Brilho intenso que cega os olhos superficiais
e permite as múltiplas visões.
Poesia que toma conta do organismo,
faz perder o juízo,
desequilibra os sentidos sensoriais,
nos faz esquecer a matéria física
e nos transforma em seres espirituais.
No escuro, a luz ressurge feito fogo
e clama por ouvidos que a ouçam
e a direcionem para a infinitude...
A poesia é a minha própria matéria;
a terra se saciará e, através da minha história,
ela se eternizará.
Sharlene Serra