*Mhario Lincoln
(Nota do editor): a expressão "banalização do mal", cunhada pela filósofa Hannah Arendt, descreve como atos prejudiciais podem ser cometidos por indivíduos comuns sem reflexão crítica, ao simplesmente seguirem normas ou ordens estabelecidas. Analogamente, observa-se um fenômeno preocupante nas universidades federais brasileiras: práticas e comportamentos, antes considerados inadequados para o ambiente acadêmico, que estão se tornando frequentes, sem a devida consideração de suas implicações éticas e pedagógicas. Mas isso, tem uma origem.
Então, aproveito essa explosão de opiniões, reclamos, apoios, palmas, gerados por uma mesa redonda na UFMA (outubro de 2024), discutindo assuntos relacionados a sexualidade e outros pormenores por demais indiscretos.
Tudo perfeito! Contudo, faltou alguém para falar no âmago da questão: o ensino brasileiro e sua qualidade educativa nos quesitos moral, ético e de informação real. Bom, nesse aspecto, a coisa vem de muito longe. Por isso, no meio desse tsunami de defensores e acusadores, fui pesquisar em fontes fidedignas e encontrei dois artigos fundamentais, publicados lá por 2010, ou seja, há 14 anos, mas que vieram no rumo do que eu pretendo passar aqui, a fim de mostrar que esse episódio ocorrido na semana passada, não é e nem será pontual.
Ambos foram escritos pelo professor e membro APB/MA, José Neres. O texto primeiro discorre sobre um livro-relatório publicado no início de 2010, intitulado “Factores asociados al logro cognitivo de los estudiantes de América Latina y el Caribe”, dos renomados pesquisadores da área de Educação da atualidade, Ernesto Treviño, Héctor Valdés, Mauricio Castro, Roy Costilla, Carlos Pardo e Francisca Donoso Rivas, no qual são discutidos problemas encontrados no processo educativo dos países que serviram de base para uma longa e exaustiva pesquisa, que teve início em 2004 e foi concluída em 2008.
In Litteris:
"Depois de meses de análise dos dados levantados, a pesquisa culminou no livro acima citado, publicado pela UNESCO e que se encontra disponível gratuitamente na internet. Em uma leitura rápida, alguém poderia pensar que o objetivo maior dos autores é comparar os sistemas educacionais dos países envolvidos na investigação, contudo, lendo página a página o trabalho, percebe-se que os autores vão mais além e sugerem soluções para diversos dos problemas que atravancam o progresso das crianças nas escolas dos países latino-americanos e do Caribe. Um dos pontos que chamam a atenção no trabalho dos educadores-pesquisadores é o que fala da relação entre clima escolar e aprendizagem". (José Neres).
Com base inicial nessas informações, acredito que o leitor começa a vislumbrar que a razão de se focar em um episódio pontual, no caso da mesa redonda da UFMA, (outubro de 2024), não é o importante. Mesmo porque, a olhos vistos, a educação brasileira vem se deteriorando ao longo dos tempos. Há inclusive de suscitar o grito de vários educadores ao afirmarem que essa "mudança violenta, começou com a falta da hierarquia necessária entre professor/aluno" (scripts.P.23). Alguns acrescentam que a educação como deveria ocorrer, moderna, ágil e respeitosa, começou a ruir a partir das ideias de Paulo Freire, cujo ponto básico do seu projeto, para e educação, como um todo, “(...) seria a prática de liberdade, através da educação como um processo de conscientização, onde professores e alunos participem de um diálogo horizontal, promovendo a reflexão crítica sobre a realidade e a transformação social". (Folha/UOL).
Ou seja, Freire defendia que a educação devesse partir da realidade dos alunos, valorizando suas experiências e conhecimentos prévios, além de enfatizar "a importância do diálogo e da participação ativa dos estudantes no processo educativo, visando a emancipação individual e social". (PEB/SP).
Claro que essas ideias de Freire até hoje são discutidas, aplaudidas (ou não). Porém, voltando à questão UFMA, porque, então, não olhar por um outro ângulo, a partir da transformação efetiva das ideias de uma “nova escola”, levando em consideração o choque de tantas teorias construídas ao longo dos últimos 30 anos que atingiram de forma direta a escola fundamental? Pois bem! Lá em cima falei do livro-pesquisa que o professor Neres citou. Nesse mesmo artigo, li:
"O clima escolar positivo então será um dos fatores responsável pelo prazer de aprender, por parte dos alunos e do prazer de ensinar, por parte dos docentes, o que se reflete diretamente na escola, na família e na sociedade em geral. Assim todos ganham e o futuro desde já agradece." (Neres).
Ora, fica inevitável não afirmar que todo esse "climão", criado em diversas universidades brasileiras, há alguns anos, não é produto da "universidade, em si". Mas de todo um histórico pedagógico/administrativo, onde as lições básicas de relacionamento ético, moral e qualitativo desapareceram das escolas e minaram de forma trágica o relacionamento aluno/professor/diretor dentro das salas de aula. E tal fato ultrapassa os umbrais das unidades de ensino e contamina inevitavelmente a família e a sociedade em geral. (Ou não?).
Com base nessa parte introdutória, nada mais posso acrescentar se não a totalidade de outro artigo publicado pelo professor Neres, data de maio de 2010, que ele, magistralmente, toca na ferida (há 14 anos), já imaginando o rumo que a educação brasileira vinha tomando desde aquela época.
É salutar reproduzir a íntegra desse artigo a fim de que os leitores possam tirar as conclusões acerca do episódio da mesa redonda da UFMA, mas olhando por um outro ângulo, tão necessário quanto o ar que respiramos. Então, chamo para a mesma mesa o professor José Neres, abaixo:
*SERIA BOM SE FOSSE APENAS FICÇÃO...
José Neres
É totalmente visível o depauperamento da educação em nossa sociedade. Isso permite ao professor imaginar o que todos gostaríamos que fosse somente ficção. Desse modo, temos abaixo a angústia de um profissional da educação diante de uma sala que quer tudo, menos estudar. A aula começa. O professor ensaia as primeiras palavras relativas ao assunto a ser trabalhado. Desatenção quase que total. Toca um celular. Uma revista da Avon passa de mão em mão. As conversas são postas em dia. Um rapazinho conecta o fone de ouvido a seu mp4 e relaxa ao som de sua música preferida. Uma senhorita retoca a maquiagem diante do espelhinho. O rapaz metido a conquistador derrama seu olhar para a colega do lado... Tudo é tão importante! Tudo é tão mais importante que o assunto da aula!... Tudo é tão mais importante que o conhecimento!... Diante da turma apática para o saber, o professor, num monólogo sem interlocutores derrama seu tão suado conhecimento para dois ou três Seres Estranhos que teimam em aprender. Já foi feita a chamada? Dezenas de olhos seguem atentamente os ponteiros do relógio. Uma mensagem é enviada para o namorado: “Vou dar um jeito de sair mais cedo. Vem me buscar. Te amo”. O professor eleva o volume da voz, na vã tentativa de abafar os murmúrios das conversas paralelas. Para prazer do mestre, as duas ou três Figuras Estranhas fazem algumas perguntas pertinentes ao assunto. Algumas questões são bem inteligentes, outras nem tanto, mas pelo menos serviram para tirar do ar aquele ranço de monólogo. O ônibus vai passar... A chamada ainda não foi feita... Acho que minha namorada já está lá embaixo me esperando... Bateu uma fome... E essa aula que nunca acaba! O pobre professor, com o olhar perdido, busca o brilho do entendimento nos olhos dos alunos, mas só encontra o opaco cinza da indiferença. O professor respira fundo. Olha para o relógio e vê que o tempo passou. Olha para a turma e sente que seu tempo passou. Olha para o mundo e vê que os tempos mudaram... Uma pergunta invade a consciência do já combalido professor: “O que eu estou fazendo aqui?” Ele respira fundo e tenta sintetizar o assunto do modo mais prático possível. “Alguma dúvida?” O ar de indiferença é a mais pungente resposta. De repente, um aluno sonolento levanta a mão. O mestre acredita que finalmente conseguiu atrair a atenção da turma. Será que vira uma pergunta que inoculará naqueles jovens o interesse pelo conhecimento? Posso ir ao banheiro? Decepção total. Aquelas duas ou três Figuras Estranhas acenam levemente com a cabeça. Eis a recompensa. É hora da chamada. Todos querem ser chamados em primeiro lugar. Alguns respondem com um “presente”, outros se limitam a levantar a mão. A maioria nem isso faz. Prefere sobraçar os livros e os cadernos quase virgens e se retiram de modo barulhento. Fim de horário. Metade da turma já está longe. A outra metade se prepara para não utilizar aquilo que não quis aprender. Todos nadam contra a correnteza do saber, buscando como tábua de salvação um diploma inflado com a certeza do nada ser. Na sala agora quase vazia, resta o que sobrou do mestre. Olhar vazio perdido em si mesmo. A consciência tranquila por ter ensinado trava uma feroz luta com a certeza de que quase nada foi aprendido. É hora de tomar um copo d’água e preparar-se para enfrentar outra turma apática. Uma nova aula começa...
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*Este artigo de José Neres foi publicado, em sua primeira versão no Jornal Pequeno, em 30 de abril de 2009. Após reformulações e acréscimos foi publicado na revista Conhecimento Prático Língua Portuguesa, nº 22, em março de 2010.