*Mhario Lincoln
Estava com uma ideia de fazer meu editorial hoje sobre o “Dia do Livro”. Todo mundo aplaudindo o “Dia do Livro”. Aí, coincidentemente ao abrir minhas pesquisas, relatórios e estatística para escrever - desta vez sem a minha liberdade poética - deparei-me com a seguinte frase: "A leitura é uma forma de escapar da realidade, mas também é uma forma de compreendê-la melhor", de Stephen King.
Ora, para bom entendedor, meia palavra basta, não é? Isso avivou a ideia da verdadeira função do livro, muito além do enredo: ser uma válvula de escape, além de passar conhecimento e ser uma bússola, na maioria das vezes. Mesmo que se leia uma simples história em quadrinhos (aparentemente infantil).
Eu, por exemplo, conheci o egoísmo, a inveja e a astúcia na sua forma básica, lendo "Tio Patinhas" e a luta incessante dele contra a Maga Patalójika, personagem do universo de Patópolis, criada por Carl Barks; uma ‘inimiga’ que constantemente tenta roubar a Moeda Número 1 dele, a qual, segundo a Maga, terá uma importância vital para conduzi-la à mesma riqueza fabulosa de seu proprietário.
Pois bem, antes de se comemorar em grande estilo e propagar pelos quatro cantos aplausos pelo “Dia do Livro” no Brasil, cabem algumas reflexões importantes: o Dia Nacional do Livro no Brasil é realizado em 29 de outubro em homenagem à fundação da Biblioteca Nacional em 1810. Mas, era o principal objetivo quando da criação, "buscar promover a importância da leitura e incentivo ao hábito de ler". Infelizmente, tal função clássica nunca se realizou por completo neste país.
Números básicos que pesquisei mostram, segundo a 5ª edição do trabalho "Retratos da Leitura no Brasil", realizado em 2019, pelo Instituto Pró-Livro, o brasileiro lê em média 2,43 livros por ano, sendo que apenas 1,26 são lidos integralmente. Este número é considerado baixíssimo, quando comparado a outros países, inclusive a Argentina, bem aqui do lado.
A mesma pesquisa indica que o acesso a obras clássicas ou de grande relevância "é limitado para grande parte da população. Fatores como renda, escolaridade e localização geográfica influenciam diretamente no acesso a esses materiais. Apenas 22% da população é considerada leitora, ou seja, ler e entender, pelo menos um livro nos últimos três meses". E sabem qual é a população atual do Brasil, com dados deste ano? 212,6 milhões de habitantes.
Esses números me entristeceram por que eu (eu mesmo) sou um dos raríssimos privilegiados que consegue ler de 1 a 5 livros por mês, fato que me poderia colocar na frente - numa concorrência de emprego. Sim! Na frente de milhares de concorrentes que não tiveram a mesma sorte de aprenderem com livros. E no meu bestunto, isso é terrivelmente injusto, porque não foram meus supostos ‘concorrentes’ que se submeteram a esse divórcio literário.
Mas quem comanda os destinos culturais - em vários setores -, pois inocula desprezo em uma população e a obriga viver, como se diz em minha terra natal, S.Luís-MA, igual 'Boi de Laurentino', ou seja, apenas, de fama.
Eu detesto números comparativos, porque não resolve e nem resolverá mesmo. Mas algumas vezes sou obrigado a divulgá-los. Por exemplo, segundo dados do 'Eurostat de 2016', países como Finlândia e Alemanha apresentam "médias superiores" a 12 livros por ano, onde 90% da população tem acesso a isso. Nos Estados Unidos, conforme pesquisa do 'Pew Research Center de 2021', a média é de 12,6 livros por ano, com um valor mediano de 4 livros.
Ora, pesquisas mórbidas no Brasil mostram, por outro lado, uma população média entre jovens de 12 e 19 anos, na maioria dos casos, analfabetos funcionais, isto é, podem até tentar ler, "mas a compreensão do texto lhe é fora da realidade". Dói muito, igualmente, ver os números absurdos da evasão escolar pularem aos olhos e nada se fazer. (Ilustração 01, anexa).
Outro dia, um desses programas de TV vespertinos, mandou às ruas seu repórter que abordava e perguntava para pessoas que circularam por um parque em São Paulo: "cite uma obra clássica que leu nos últimos anos?" Sabe qual foi a resposta? 78,7% dos jovens entrevistados - quando respondiam - mostravam total desconhecimento sobre obras importantes para a formação humanística da juventude brasileira.
Nunca leram (e nem vão ler, porque continuam analfabetos funcionais na vida adulta) grandes autores como Gregório de Matos (1636-1696); Gonçalves Dias (1823-1864); Álvares de Azevedo (1831-1852); Castro Alves (1847-1871); José de Alencar (1829-1877); Bernardo Guimarães (1825-1884); Machado de Assis (1839-1908); Aluísio Azevedo (1857-1913); Olavo Bilac (1865-1918); Cruz e Sousa (1861-1898); Monteiro Lobato (1882-1948); Cora Coralina (1889-1965); Mário de Andrade (1893-1945); Carlos Drummond de Andrade (1902-1987); Mario Quintana que tem uma das frases mais lindas sobre o amor quando diz que "AMAR É MUDAR A ALMA DE CASA" (1906-1994); Jorge Amado (1912-2001); Nelson Rodrigues (1912-1980); João Guimarães Rosa (1908-1967); Carolina Maria de Jesus (1914-1977); Manoel de Barros (1916-2014); Clarice Lispector (1920-1977); Rubem Fonseca (1925-2020); Ariano Suassuna (1927-2014); Luis Fernando Verissimo (1936-); Marina Colasanti (1937-); Lygia Bojunga (1932-); Ziraldo (1932-); Caio Fernando Abreu (1948-1996); Conceição Evaristo (1946-)... e dezenas de outros 'aprofundores' da existência.
Então, por que aplaudir efusivamente o DIA DO LIVRO no Brasil? O que os analfabetos funcionais (sem nenhuma culpa de sê-los), vão dizer, vão aceitar? Será que esse aplauso exacerbado não piora ainda o status quo daqueles que (apesar dos esforços e da visita incessante aos sebos da vida) não conseguem entender o que leem? Ou....
Não será, diante desse quadro lamentável em nosso país, o “Dia do Livro” apenas uma jogada comercial para quem ainda pode comprar, ler e entender, segundo as mesmas pesquisas, algo em torno de 9% da população ativa?
Raciocina comigo: embora o ‘Dia do Livro’ tenha como objetivo promover a leitura, a data se tornou de há muito, uma oportunidade comercial que beneficia principalmente aqueles que já têm acesso facilitado aos livros. Aliás, essas vendas (de certa forma) não dependem diretamente do leitor, mas de ‘programas de governo’, com centenas de obras (muitas vezes totalmente desconhecidas e sem a verdadeira função de livro didático ou de incentivo à leitura), comprados e distribuídos nas escolas, fato que agrega à receita literária e empresarial do país algo em torno de 55 milhões de unidades, gerando uma receita de mais de R$ 2 bilhões/ano.
Por essa razão, nem sempre as campanhas pró-leitura básica alcançam as camadas menos favorecidas, perpetuando a desigualdade no acesso ao aprendizado. Aliás, complementando a informação do parágrafo anteanterior, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), 8,1% dos adolescentes com idade típica do ensino médio, estavam fora da escola em 2023, fato que dialoga com as muitas deficiências dessa etapa de ensino na educação brasileira e no aprendizado da leitura.
E mais: ainda em 2023, havia 9,3 milhões de pessoas - com 15 anos ou mais de idade – analfabetas e analfabetas funcionais. Dessas pessoas, 54,7% (5,1 milhões de pessoas) viviam na Região Nordeste e 22,8% (2,1 milhões de pessoas) na Região Sudeste.
Ora, sejamos sinceros: há clima para comemorar o “Dia do Livro” se nem mesmo a data serve para incentivar - de forma consistente - a leitura? Um fato realmente triste quando se vê a deficiência gritante, a partir das escolas públicas e privadas, egóicas e altamente comerciais. Algumas delas implementam iniciativas reais em prol da leitura entre os alunos? Mesmo que o Plano Nacional de Educação (PNE) estabeleça metas para melhorar a qualidade da educação, incluindo o incentivo à leitura, o que se vê é falta total de gerenciamento adequado. Algumas vezes professores (de forma elogiável) praticam ações literárias com suas turmas ou colégio, numa forma (mínima e insuficiente) de suprir o que sugere o PNE.
Em alguns momentos, surge uma ou outra feira de livros, clubes de leitura e bibliotecas escolares. Mas sempre acompanhadas de grandes deficiências financeiras ou funcionais por falta de preparo e planejamento adequados. Essa é a realidade! Não vamos esconder essas deficiências debaixo do tapete e comemorar efusivamente o “Dia do Livro” no Brasil de forma (quase) egoísta, diante de milhares de jovens analfabetos funcionais.
Acho que agora dá para entender direitinho a frase lá de cima: "A leitura é uma forma de escapar da realidade, mas também é uma forma de compreendê-la melhor", de Stephen King. Na real: alguém não quer que entendamos tanto assim!
*Mhario Lincoln é presidente da Academia Poética Brasileira
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Referências
https://observatoriodeeducacao.institutounibanco.org.br/
Instituto Pró-Livro. (2019). 5ª Edição da Pesquisa Retratos da Leitura no Brasil . Disponível em: Instituto Pró -Livro
Eurostat. (2016). Estatísticas Culturais - Participação Cultural . Disponível em: Eurostat
Pew Research Center. (2021). Quem não lê livros na América? . Disponível em: Pew Research Center
Ministério da Educação. (2014). Plano Nacional de Educação (PNE) . Disponível em: Ministério da Educação