*Mhario Lincoln
Na primeira oportunidade que tive de conversar com uma pessoa estudiosa da literatura maranhense - muito respeitada e aplaudida em Brasília – sobre o porquê de José Chagas não ter o mesmo 'reconnaissance académique' de outros contemporâneos, escutei dele:
Logo depois da pergunta notei certa resistência dele em confidenciar outras coisas para mim, um jornalista e curioso da literatura. Assim, pediu licença e deu de costas.
Na verdade, fugindo, eu, um pouco, do mesmo texto romântico e regional de sempre, acho que José Chagas surgiu no contexto como figura central na literatura maranhense, a partir dessa obra poética onde foram intercaladas facetas pouco utilizadas na década de 1970: a profunda compreensão do ambiente físico de São Luís do Maranhão, com nuances sociopolíticas muito fortes e com denunciantes insights; especificamente em "Maré Memória", de 1973.
No meu bestunto, a partir daí, Chagas passou a tecer uma narrativa lírico-gritante, onde encarnou a relação intrínseca entre o homem e o contexto social (no poema do mesmo nome) representado literalmente pela lama e pelo mangue, fato que transcendeu – naquele instante - ao regionalismo poético gonçalvino - até então, muito usado nas construções poéticas de alguns de seus contemporâneos poetas.
José Chagas passou, então, através desse novo modo elaborativo, a abordar questões muito mais universais da existência humana. Por isso a construção lírica de "Maré Memória" foi ‘quase’ comprometida, pois as marcas indeléveis do contexto são, sem dúvida, as metáforas que associam o homem aos seres do manguezal, invisíveis, solitários, pobres e indigentes. Nos versos iniciais:
"Olha aí a palafita
Crescendo sobre a maré.
O homem que nela habita
Caranguejo ou peixe é."
Desta forma, o poeta José Francisco das Chagas, nascido em Santana dos Garrotes - PB, 29 de outubro de 1924, portanto neste 2024 completando 100 anos, se vivo estivesse, passou a estabelecer de forma direta, uma analogia entre o habitante das palafitas e os seres que se enterram na lama do mangue, revelando uma fusão entre o humano, o desumano, mesmo que natural fosse esse desumano.
Essa representação simbólica evidencia a condição de marginalização e a perda de identidade, temas recorrentes em sua obra. E isso, com certeza, mexeu com algumas pessoas ligadas a parte política do mundo literário maranhense. E não agradou muito.
Mas, convido, agora, para a mesma mesa o imenso Jomar Moraes, que um dia me confidenciou: “a poesia de José Chagas captura a essência do homem maranhense, inserida em um ambiente que é ao mesmo tempo abrigo e prisão, beleza e decadência”. Esse Moraes era sensacional.
Pois bem! Essa dualidade explorada principalmente no poema "Maré Memória", onde o movimento da maré serve como metáfora, igualmente, para a fluidez da "memória e da existência", nas palavras completadas de Jomar Moraes, explicita a estética adotada por Chagas para combinar tanto a simplicidade e a profundidade existencial, com uma linguagem acessível, sem sacrificar a densidade temática.
Por outro lado, há de se notar a perfeita regionalização do poeta paraibano e a sua adaptação ao 'modus vivendi' do cenário poético inserido em sua produção, com detalhes incríveis e referências sobre mangue e palafitas, muitas delas nas cercanias do braço do rio anil, ainda pululantes, 51 anos depois do poema ter sido escrito.
Tal observação realista só enriqueceu o texto ao situar o leitor em um local específico, mas com implicações praticamente universais. Tanto que o poeta Nauro Machado - outro, dos mais cultuados poetas maranhenses - observou que José Chagas - nessa lírica palafitária - transcendeu o particular para atingir o universal, "fazendo do mangue um símbolo da condição humana”. Perfeito!
Vale também notar que a estrutura do poema "Maré Memória", com rimas alternadas e um ritmo cadenciado, reflete o movimento constante da maré, reforçando a temática central. As belas, enquanto arte, reproduções de imagens relacionadas à água e à lama acabaram criando uma atmosfera opressiva, evidenciando a luta do indivíduo contra forças além de seu controle, algo que é aplaudido até hoje.
Na minha opinião, Chagas buscou não apenas retratar a realidade social, mas também provocar uma reflexão introspectiva. E tal fato "feriu suscetibilidades...", pensamento a mim revelado por um membro da Academia Maranhense de Letras, já falecido. Esse confidente tinha certa razão, mesmo que esses versos de Chagas, não se limitassem a uma crítica social direta.
Porém, “Maré Memória” explorou a dimensão existencial do ser humano; e isso foi mais que genial. Por essa razão, a beleza extraordinária do poema, pois essa abordagem o alinha a outros grandes nomes da literatura brasileira, como, por exemplo, João Cabral de Melo Neto, com quem compartilha a precisão na escolha das palavras e a profundidade temática. E mais: impossível não o incluir esse poema dentro dos parâmetros do estudo de Dominique Maingueneau, linguista francês e professor emérito da Universidade Sorbonne, com vasta obra publicada explorando a relação entre texto e contexto social.
Por isso, a influência de José Chagas na literatura maranhense – e deveria ser muito mais na literatura brasileira - é extremamente importante. Tanto que o escritor e ensaísta Wilson Marques em texto que li, diz com letras maiúsculas que “a obra de Chagas é um patrimônio cultural de São Luís, essencial para compreender a identidade e a alma maranhense”. Concordo plenamente porque, mesmo muito anos depois, a poesia de Chagas não apenas retrata o Maranhão, como também contribui para a construção de sua memória literária forte e não invasiva.
Evoé, Chagas!
*Mhario Lincoln é presidente da Academia Poética Brasileira
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Referências:
MACHADO, Nauro. A Poética de José Chagas. São Luís: Editora Maranhense, 1978.
MARQUES, Wilson. “José Chagas e a Identidade Maranhense”. Revista Literatura Hoje, n. 12, 1990.
MORAES, Jomar. Entre o Mangue e a Maré: A Poesia de José Chagas. São Luís: Academia Maranhense de Letras, 1985.
Dominique Maingueneau (1950). França.
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