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Brasil especial Flor de Lys

Porque todo anjo sofre, para tornar-se anjo

Uma homenagem a Flor de Lys.

03/11/2024 às 12h06 Atualizada em 05/11/2024 às 09h00
Por: Mhario Lincoln Fonte: Mhario Lincoln
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Flor de Lys, seus dois primeiros filhos, em 1961.
Flor de Lys, seus dois primeiros filhos, em 1961.

 

*Mhario Lincoln

 

O tempo passa e ela nunca saiu de perto da gente. Aquele sorriso encantador! Ela não era de muitos abraços. Mas era uma mulher de ação. Ela não era de muitos elogios diretos, mas uma mulher compreensiva e reconhecida. Valorizava os que mereciam. Tentava ajudar mesmo aqueles que abusavam de sua confiança.

 

Nunca submergiu. Ela não era de autocomícios, nem de autoelogios. Por isso, uma mulher confiável e respeitada. Havia concluído o ginásio e o curso normal. Mas possuía uma inteligência cultural magnânima, ensinada pela faculdade da vida.

 

Fruto de uma união entre um 'sírio-libanês' e uma maranhense poeta, ela nasceu por último, dos onze filhos. Aos 5 anos, dançava e cantava na calçada alta da casa-quitanda onde morava, em Rosário-MA, para alegrar os tropeiros que lá descansavam, enquanto o pai fornecia e organizava nos lombos dos burros, as mercadorias que seriam vendidas nas cidades ao redor daquele município e nos sítios afastados.

 

E mesmo sem saber que em 1934, os Estados Unidos haviam conhecido a preciosa Shirley Temple, através do filme "Olhos Encantadores", essa menina interiorana com rosto feliz, parecia encarnar Temple, na calçada-palco de sua casa, sem nunca ter, sequer, ouvido falar da atriz que, ao depois, veio ser um dos maiores sucessos do Mundo.

 

Das apresentações na calçada, à música, após vir para a capital, ela demonstrava muitas qualidades artísticas. Porém, teve que estudar e concluir o ginásio e depois matricular-se no, então, Curso Normal. Ambos, em excelentes escolas públicas da época.

 

Na escola se destacou como artista e fez várias apresentações como cantora. Interrompeu as atividades para se casar na década de 50. O emprego veio junto à gravidez primeira.

 

Infelizmente houve um aborto por má formação fetal. Ela, por isso, passou a se dedicar somente às funções no Tribunal Regional Eleitoral. Tudo passou rápido. Em 1954 engravidou e teve um filho. Na segunda gravidez, uma filha.

 

O casamento durou 7 anos. Após o desenlace, conheceu uma grande amiga que mudaria sua vida para sempre: Maria Inês Saboya, colunista de São Luís, praticamente um ícone do colunismo ludovicense.

 

Como sabia escrever muito bem, inclusive poesias e contos, ela aprendeu rapidamente a linguagem impressa do jornal e muitas vezes substituiu Maria Inês em sua coluna diária. Depois, chamada por um outro jornal de grande circulação, o "Jornal Pequeno", passou à titularidade com coluna própria.

 

Na sequência veio a televisão. Ela foi uma das recordistas da TV Brasileira. Conseguiu produzir e apresentar o segundo programa televisivo mais longevo da região Nordeste, perdendo somente para um outro programa, o do jornalista José Raimundo - o MATV.

 

O tempo passa e ela (um anjo) continua falando à consciência de quem amou em vida. Tudo em sua vida nos faz pensar e repensar sobre a sobrevivência humana. Porque todo anjo sofre para tornar-se anjo.  Para isso, basta o exemplo da filantropia e da doação direta. Como na ocasião em que ajudou Maria Inês na preservação dos objetivos do "Lar de José", uma entidade filantrópica que cuidava dos filhos de pessoas com lepra.

 

Por outro lado, contra tudo e contra todos, se desquitou numa hora em que era explicitamente ‘maldito’ o desquite. Especialmente pelos olhos da Igreja Católica e até mesmo pelos evangélicos, em cuja família ela nasceu, dentro dos ensinamentos da Igreja Batista.

 

Mesmo assim, lutou contra todos os preconceitos. Desde o ginásio ela era assim: integrou a Banda Marcial Masculina nos desfiles de "Sete de Setembro", empunhando uma corneta. Fez o teste, foi aprovada, mas sentiu forte rejeição de seus pares. Venceu e foi a monitora da banda. Isso numa cidade extremamente tradicional como São Luís, nos anos 40.

 

Outra coisa surreal para a época: há matérias de jornais dando conta de que homens se amontoavam na rua de acesso à praça João Lisboa, a central da capital do Maranhão, para vê-la dirigindo uma Rural Willys - meio atrapalhada, mas sendo ajudada por seu incrível anjo da guarda.

 

Há indícios fortes de que a mulher a quem me refiro teria sido a segunda a dirigir um automóvel na cidade. A primeira, pode ter sido a esposa de um ex-governador do Maranhão. Na verdade, suas virtudes foram muito mais contundentes do que dirigir ou tocar corneta numa banda marcial.

 

O desquite foi uma revolução: "Fiz contra minha família e a família dele. Fui praticamente banida de alguns locais em razão disso", confessou-me anos depois. Mas ela não esmoreceu. Passou o tempo e essas mesmas pessoas que a baniram da sociedade, a aplaudiram por suas ações corretas e dignificantes.

 

Depois veio a batalha pela guarda dos dois filhos, desse primeiro casamento. No tribunal, uma luta digna de filmes. Um enredo de situações não tão diferentes da visão do diretor Xavier Legrand, premiado como melhor diretor no Festival de Veneza de 2017, em seu filme "Custódia" (Jusqu'à la garde), que mostra na tela: "a dor do divórcio, as brigas entre o casal, a disputa pelos filhos, o processo de guarda, acusações recíprocas relacionadas à Alienação Parental e o sofrimento dos filhos".

 

Ela vivenciou e superou. Levou os dois filhos para casa. Educou-os com alguma dificuldade - inclusive presencial - mas os fortaleceu com exemplos.

 

No segundo casamento (quebrando 'rigorosas' regras sociais, na época), ganhou outra filha; e no terceiro, ganhou mais uma filha. Carinhosas e dedicadas: 3 filhas e um filho mais velho.

 

Ela entrou no barco de Caronte, exatamente às 15:50, no dia 29 de maio de 2011, num domingo de muito sol. Ia completar 82 anos, dia 03.11. Mas, deixou entre os mortais um legado tão forte quanto sua personalidade aguerrida e sua vontade de ser feliz da maneira como ela era.

 

A pessoa a que me refiro viveu num País, onde a tradição patriarcal e machista da sociedade ainda é uma constante, porém, confrontada por mulheres fortes como ela, levantando a bandeira do direito ao estudo, ao trabalho; pelos direitos individuais e coletivos. Por isso, ela sempre lutou pela cidadania plena.

 

Destarte, muitos dos conceitos arcaicos de alguns segmentos sociais da cidade de São Luís do Maranhão acabaram indiretamente sendo mudados, pois o exemplo dela influenciou uma geração de mulheres dispostas a lutar também, com ou sem marido. Com ou sem filhos. Com ou sem empregos fixos.

 

Com os filhos.

Pois bem! Tenho um imenso orgulho dessa mulher que descrevi. Minha mãe, jornalista Flor de Lys, que hoje, vive em nossos corações. Sou o filho mais velho e assisti, de perto, a luta dela para garantir meus direitos, diante de juízes patriarcais do tribunal daquele Estado.

 

Tinha sete anos. Minha irmã, Orquídea, tinha meses de nascida. Depois vieram Cristina e Dalvinha. Presentes de Deus para nossa família, no segundo e terceiro casamentos.

 

Hoje, neste 3 de novembro, ela completa 94 anos numa festa simples na dimensão em que ela se encontra.

 

Amanheci sentindo pontadas no coração.

Não de saudades. Mas de felicidade em saber que Flor de Lys continua aqui, no meu sangue, nas minhas células, no meu coração, na minha alma, porque no meu entendimento, a morte é um momento em meio a um caminho infinito ou apenas atravessando o rio viático. É uma transformação e não um ponto final.

 

A despedida para essa viagem, não a tornou morta, porque ela está bem viva em mim e em outra dimensão – a espiritual. E muito melhor, porque está com os sentimentos expandidos, os amores regenerados, outras alegrias incorporadas e com muitas das imperfeições superadas.

 

Então, relendo João 14, na Bíblia Sagrada comemorativa dos 120 anos da 1ª Igreja Presbiteriana, a mim presenteada por Reinaldo dos Santos, pude constatar porque minha mãe vive em paz no céu:

 

“Que o coração de vocês não fique angustiado; vocês creem em Deus, creiam também em mim. Na casa de meu Pai há muitas moradas. Se não fosse assim, eu já lhes teria dito. Pois vou preparar um lugar para vocês. E, quando eu for e preparar um lugar, voltarei e os receberei para mim mesmo, para que, onde eu estou, vocês estejam também. E vocês conhecem o caminho para onde eu vou”.

 

Mãe, "Dogum günün kutlu olsun", ou Feliz Aniversário como se fala na Síria, terra-berço do seu pai e meu avô Antonio Felix.

 

Amém!

 

Mhario Lincoln é presidente da Academia Poética Brasileira.

 

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Reinaldo JoseHá 4 semanas Curitiba PRLindo texto e testemunho maravilhoso. Um lindo texto em forma de testemunho muito representa um legado de admiração, de respeito e honra à uma pessoa querida. Muito me emocionou e a citação ao meu nome muito me honra.
ANTONIO GUIMARÃES DE OLIVEIRA Há 4 semanas São LuísPresidente Mhario Lincoln, tive o prazer de conhecer sua mãe. Fraterno abraço!
Maria Nauza Luza Martins Há 4 semanas Brasília/DF Muitas coisas, histórias e vivências me ligam a Mhario Lincoln. Conheci sua mãe Flor de Lis, figura indispensável e emblemática na alta sociedade de São Luís. Ambos foram amigos do meu saudoso irmão mais velho José Carlos Martins que muito os admirava. O certo é que mãe e filho conquistarmos muitas pessoas em São Luís pelo importante trabalho como Comunicadores, jornalistas e Colunistas Sociais, que era moda na época. Meu salve salve a ambos!
Tereza Braúna Moreira LimaHá 4 semanas WhattsAppAmigo querido, tuas palavras viabilizaram um encontro com nossa querida e sempre lembrada Flor de Lys! Recordei momentos preciosos de sua vida e de como ela desbravou preconceitos com sua postura altiva , inovadora e corajosa! Um texto que exala amor e louvor ????
Silvania TamerHá 4 semanas WhatssApp (S.LUis)Querido amigo Mhário, Terminei de ler o texto com lágrimas escorrendo no rosto e me faltam palavras para expressar o quanto me tocou. A homenagem que fizeste hoje, no aniversário de tua mãe, Flor de Lys, trouxe à tona tantas lembranças e sentimentos profundos. Essa mulher admirável, nossa amiga querida e respeitada colunista social, foi uma verdadeira inspiração para mim e para tantas outras mulheres.
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