*Mhario Lincoln
Tereza Braúna Moreira Lima, uma poeta, uma pessoa humana, alguém que exala sabedoria e encanto no que escreve, desde prosa, ensaios técnicos e poesia. Há virtudes incomensuráveis em cada parágrafo, em cada ponto, em cada ideia. Uma pessoa que eu posso denominar de grande pensadora do século XX, no Brasil. Em todo lugar que vá participando de congressos, encontros e palestras, traz de volta uma série de elogios cabíveis a quem se dedica ao estudo diuturnamente.
Mas, lá no fundo, há também um ser humano, em cuja alma, há resquícios fortes de pormenores inquietantes e imorredoiros. É aí que entra a poesia, talvez, como uma grande válvula de escape. Sim, porque a poesia tem esse poder singular de traduzir as profundezas da experiência humana em imagens e metáforas que ressoam com as emoções mais íntimas.
É aqui é que surge o poema "Expurgo", onde a autora compassa e repassa sua jornada introspectiva, que simboliza um acerto de contas com o passado e um reencontro com a serenidade perdida. À luz da psicanálise de Jacques Lacan, por exemplo, essa jornada pode ser interpretada como a manifestação do inconsciente; a busca pela reconciliação com o passado.
Isso fica claro no verso "trem da memória" que "voltava aos trilhos após décadas de exílio". Tais palavras, representam aqueles conteúdos inconscientes que foram reprimidos, mas que insistem em retornar à consciência, num movimento contínuo dos significados, indicando que as experiências traumáticas não desaparecem, mas permanecem latentes, influenciando o sujeito de maneira subterrânea.
Já no "vomitar o passado", o poema evidencia o processo de ab-reação, onde o sujeito expurga (mas ainda é influenciada doloridamente) por suas emoções reprimidas. Trago Lacan novamente para a mesma mesa, porque há necessidade de vincular o inconsciente da poeta com toda a estrutura da linguagem lírica.
Aqui, o "réquiem de fumaça" mostra isso, quando sinaliza a materialização dos significados sufocados, que obscurecem o presente. A fumaça, efêmera e difusa, é, na verdade, a dificuldade de compreender plenamente esses conteúdos inconscientes. Porém, é significativo dizer que essa mesma fumaça do réquiem evoca um ritual de despedida, um luto necessário para a cura.
Analisando os versos, "lembranças amargas eram esmagadas na corrida sobre os trilhos", notei que o movimento inexorável do tempo acabou ajudando a desgastar a dor das memórias e os "vagões, o sacolejo de fatos ancestrais abriu janelas para respirar", acabou por abrir espaço para novos ares, para a renovação do espírito. Ou seja: as 'janelas abertas' são uma metáfora para a entrada de novas perspectivas, permitindo que a poeta respire e se reconecte com o presente.
E quanto às "recordações voavam à deriva, que irmanando-se às nuvens, sombreavam tréguas, desabrochando sementes, chovendo paisagem"? Acho eu que neste verso, Tereza Braúna consegue finalmente transformar as memórias dolorosas em elementos da natureza, importantes para o ciclo da vida. As recordações se elevam, unem-se às nuvens e, ao choverem, fertilizam a terra, permitindo o desabrochar de novas sensações.
Aí está a beleza e o significado das palavras certas no verso certo, que faz entender a transmutação como símbolo da possibilidade de transformar a dor em crescimento, de permitir que o sofrimento alimente novas paisagens emocionais; e tal interpretação acabou me levando direto, sem escala, ao pensamento estoico. Especialmente nas ideias de acessibilidade e transformação da dor.
Desta forma, convido também Sêneca, para se sentar na mesma mesa diante do que li em “Consolations of Seneca: To Helvia, Polybius, and Marciaonde”, ele aborda o luto pela perda de um filho, aconselhando “a encontrar conforto na compreensão da natureza observada da morte e na valorização das virtudes cultivadas durante a vida.” (Sêneca, Ed. agosto 2021).
Tereza Braúna a mim me pareceu também ecoar esse pensamento ao sugerir que, embora a saudade permaneça, é possível encontrar uma forma de conviver com ela, permitindo que novas sensações de serenidade desabrochem. Epicteto, outro a quem recorri, em seu “Manual”, afirma que “não controlamos os eventos externos, mas podemos controlar nossas reações a eles.” (Epicteto, 1992).
Ora, então, no poema, a poeta maranhense, de uma forma muito interessante, na verdade, não busca eliminar as memórias dolorosas, mas transformá-las, permitindo que se integrem ao seu ser de forma a promover a cura. Essa abordagem reflete a sabedoria estoica de aceitar o que não se pode mudar e focar no desenvolvimento interno.
Bom lembrar também, a intercessão de Viktor Frankl, em "Em Busca de Sentido", onde ele explora o encontrar de 'significado', mesmo nas situações mais adversas (Frankl, 2008).
Frankl propõe “(...) que o sofrimento pode ser uma oportunidade para o crescimento quando abordado como uma atitude correta.” A jornada poética de Tereza Braúna Moreira Lima, sem dúvida, se alinha a essa perspectiva, mostrando-a nessa busca de um novo sentido ao transformar suas dores em paisagens férteis.
Embora a perda de um filho seja uma ausência que jamais poderá ser completamente superada, “Expurgo” oferece uma visão esperançosa. A purgação da tristeza não significa esquecer ou apagar a saudade, mas sim transformar a relação com a memória, integrando-a de forma saudável à existência. As "tréguas sombreadas", por exemplo, agregam momentos de paz conquistados, após o enfrentamento das emoções mais dolorosas.
Desta forma, a imagem final de “chovendo paisagem” é particularmente significativa. Ela simboliza a renovação e o crescimento que podem surgir após o processo de luto. A chuva, frequentemente associada à limpeza e ao renascimento, aqui fertiliza o solo, permitindo que novas paisagens se desenvolvam. É uma metáfora poderosa para a capacidade de reproduzir sentidos humanos de resiliência e transformação.
Ainda há espaço para ouvir Joanna de Ângelis sobre o luto. Ela diz: "o luto é uma ocorrência natural diante da perda de um ente querido ou de algo de grande significado emocional". Ela destaca que o luto não é apenas um período de sofrimento, "mas também uma oportunidade para o crescimento pessoal e espiritual. A dor sentida é legítima e deve ser reconhecida e vivenciada, para que uma pessoa possa encontrar equilíbrio e paz interior". E complementa de Ângelis: "Ao enfrentar a dor, o indivíduo tem a oportunidade de aprofundar sua compreensão sobre a existência, fortalecer suas virtudes e ampliar sua capacidade de amar."
Destarte, “Expurgo” é uma obra que mostra, com profunda sensibilidade humana e filosófica, uma complexa jornada do luto e da busca pela serenidade. Ao ler esse poema - e me emocionar, óbvio - concluí que embora não se espere esquecer a perda de um filho, se pode encontrar maneiras de expurgar a tristeza e amenizar a saudade, permitindo que novas sementes de esperança e serenidade floresçam em nossas vidas.
O POEMA
EXPURGO
(Tereza Braúna)
O trem da memória voltava aos trilhos após décadas de exílio
vomitando o passado nublava o momento num réquiem de fumaça
enquanto lembranças amargas eram esmagadas na corrida sobre os trilhos
nos vagões, o sacolejo de fatos ancestrais,
abriam janelas para respirar à deriva voavam recordações
que irmanando-se às nuvens sombreavam tréguas,
desabrochando sementes, chovendo paisagem
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Referências
Epicteto. (1992). Manual. Trad. Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Ed. Vozes.
Frankl, VE (2008). Em Busca de Sentido. São Paulo: Editora Vozes.
Sêneca. Agosto 2021. (Edição Inglês).
De Ângelis, J. (1996). “Após a Tempestade”. Psicografia de Divaldo Pereira Franco. Salvador: LEAL.
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